- Quer saber como tudo começou? – pergunta o homem barbudo sentado na cadeira de madeira.
- Na verdade, eu já sei. Mas quero ouvir com suas palavras. – responde o visitante recostando-se em sua própria cadeira.
- Humpf... se é assim...

          “Eu me lembro do verde. Verde abundante, em todos os tons possíveis de se imaginar. Nos cercando, nos cobrindo, nos sufocando num calor insuportável. Assim era a mata quando nela adentramos. Quatro semanas de caminhada depois, estávamos exaustos. Nossas camisas empapadas de suor, nossas roupas sujas... mas nada isso importava. O que importava era seguir o comandante.
          Joaquim de Araújo era um homem forte. De cinqüenta e poucos anos, ainda liderava expedições como a nossa, com o objetivo de abrir rotas pela mata e capturar os nativos, que estavam sendo vendidos a bom preço em São Paulo. A coroa agradecia o nosso esforço... e os nossos bolsos nunca ficavam vazios. Somente o ouro poderia nos impulsionar neste inferno verde.
          Quando encontrávamos os selvagens, o verde era substituído por outra cor: o vermelho. O vermelho do sangue desses animais, que insistiam em lutar para permanecer em suas aldeias imundas, vivendo nus, sem lei nem ordem, sem nem ao menos o temor da cruz.
          E como lutavam os animais! Chegaram a matar dois dos nossos com suas lanças e feriram mais dois com suas flechas certeiras. Mas neste dia, fizemos a vontade do Senhor e conseguimos apresar trinta deles para levá-los à civilização, onde teriam a oportunidade de converter-se em cristãos e trabalhar a serviço de algum nobre, como era seu destino. Infelizmente, duas dúzias deles morreram na luta, fazendo nosso comandante lamentar o prejuízo. E as mulheres fugiram mata adentro. Nem esse divertimento pudemos ter naquele dia.
          Meu nome é Antonio Silveira. Na época eu tinha apenas dezesseis anos e era a primeira vez que participava de uma das expedições de apresamento dos selvagens. Mesmo com a minha inexperiência tive orgulho em degolar um dos animais quando o encontrei escondido atrás de uma árvore. Era um velho. Não teria valor algum no mercado.
          Após reunirmos a renda do dia e nos certificarmos de que estavam bem amarrados, nosso comandante decidiu retornar à Missão de Santa Maria, por onde passamos dois dias atrás. Lá seria um bom lugar para manter o grupo de escravos, até nossa volta à capital, uma vez que o Padre Lázaro era associado de Joaquim de Araújo.”

- Muito cristão de sua parte – ironiza o visitante.
- Naquela época, tínhamos outras idéias. Afinal, era 1590. Posso continuar?
- Deve.
- Pois bem...

          “Nem tudo ocorreu como planejava nosso capitão. Caminhamos até o anoitecer, quando resolvemos pernoitar numa clareira próxima a um riacho. Reunimos os selvagens num local e os amarramos uns aos outros, e também às arvores mais próximas. Estabelecemos a rotina de vigia e aqueles dispensados do primeiro turno se recolheram para dormir.
          Eu estava de prontidão quando aconteceu (para minha desgraça). Primeiro, um clarão e o céu se encheu de uma luz azulada. A noite tornou-se praticamente dia, empalidecendo a nossa fogueira. O estrondo que se seguiu foi aterrorizante. Muitos de nós caíram de joelhos pedindo perdão por seus pecados, acreditando tratar-se do fim do mundo. Outros embrenharam-se na mata gritando como loucos. Os selvagens, impossibilitados de fugir, gritaram assustados e diziam coisas que ninguém compreendia.
          De onde estava, pude perceber que havia fogo e fumaça num ponto não muito distante na mata. Naquela época, como já disse, eu era um jovem ignorante e sedento por aventuras e riquezas. Não hesitei. Corri para o local onde o fogo se pronunciava.
          Cheguei no local em quinze minutos. Fui o primeiro a chegar. O cenário era de desastre. Árvores caídas e queimadas como se uma mão invisível houvesse passado furiosamente por ali. Eu acreditava que Deus finalmente havia decidido queimar aquele pedaço do inferno na terra.
          Aproximei-me cautelosamente. No final do rastro de destruição havia uma cratera com cerca de vinte metros de diâmetro. Um buraco negro, de terra queimada. O calor era grande, mas suportável. Foi quando finalmente vi.
          Dentro da cratera havia uma redoma. Uma coisa que lembrava uma colher. Uma redoma com dois metros de comprimento e igual altura e uma cauda de três metros, que ia afinando a partir da redoma. Era vermelha, mas conforme o calor diminuía, sua cor se tornava azul.
          Com o cano de minha espingarda, cutuquei a redoma. Ela se desfez como água, abrindo sua parte superior.
          E dentro havia um demônio.”

- Um demônio? Que pitoresco... – zomba o visitante.
- Naquela época, era a única coisa que eu podia pensar. Hoje, eu sei que o demônio tem outras formas. Como a sua, senhor Melkart. – diz o homem barbudo com raiva.
- Demônio? Sim, sim... já fui chamado assim. Mas continue, Silveira...
- Como eu dizia...

          “O demônio era pequeno. Devia ter uns cinqüenta centímetros de altura. Sua cabeça era desproporcional ao corpo. Tinha dois orifícios na parte superior da cabeça, que deveriam ser seus olhos, e dois orifícios laterais. Não vi nariz algum e o que parecia uma boca era protuberante e se destacava na cabeça redonda. Seu corpo era esguio, braços longos e tentaculares, duas pernas curtas... Algo horrível. Ao me aproximar para observar melhor, a coisa abriu os olhos graúdos e fixou-os em mim. Meu primeiro pensamento foi atirar naquela coisa. E foi o que fiz. Engatilhei a espingarda e acertei em cheio um tiro na cabeça daquele demônio, espalhando seus miolos por toda parte.
          Com o coração palpitando eu queria sair dali o mais rápido possível, mas foi quando vi o tubo com as luzes de várias cores, bem ao lado do monstro. Eram cores maravilhosas e me atraíram como uma borboleta. Hipnotizado, toquei no tubo e da mesma forma que a redoma, ele se desfez.
          Olhei maravilhado aquelas luzes saírem flutuando do tubo. Elas giraram ao meu redor e antes que eu me desse conta, elas investiram contra mim e entraram em meu corpo, sem abrir um buraco sequer. Apenas transpassaram minha pele e eu pude senti-las percorrendo meu corpo. Imagens loucas, de lugares estranhos, mundos perdidos, sóis e luas distantes invadiram minha mente. Na época, achei que estava vendo uma paisagem do inferno.”

- Você parece ter fixação no inferno, Silveira. Ou estou enganado? – o visitante sorri.
- Céu ou inferno... tenha o nome que tiver, não acredito que exista. Não mais. – Silveira se remexe na cadeira. Em seus olhos, um ódio profundo parece flutuar.
- Ah, meu pobre amigo... Será que 432 anos de vida não lhe ensinaram nada?
- Ensinaram que eu não consigo morrer. Por mais que tente, e acredite, eu já tentei tudo o que se possa imaginar, eu continuo aqui. Aquela experiência me tornou imortal... E me amaldiçoou.
- Ah, sim. Sua condição é interessante... Um imortal que não pode tocar em ninguém.
- Maldito demônio zombeteiro...
- Não, não, Silveira. Posso ser um demônio (quem sabe?), mas estou aqui para ajudá-lo.
- Me ajudar? Como?
- Eu venho lhe observando desde muito tempo. Sei que seu encontro com forças de outro mundo lhe deu a imortalidade, mas também lhe deu o toque da morte.

          Silveira olha para as próprias mãos enfaixadas e enluvadas.

- Você não pode tocar em nenhum ser vivo sem que o mate. E isso já lhe custou muito, não? Sua família, seus amigos... – os olhos do visitante parecem duas brasas incandescentes.
- Sim, sim, SIM!!! Maldito. Sabe de tudo isso e veio me atormentar? Faz vinte anos que me recolhi nesta cabana, afastado de tudo e de todos para tentar existir em paz... Me deixe! Suma daqui!
- Dificilmente você gostaria que eu sumisse. Eu tenho poder para lhe dar seu maior desejo.
- Meu maior desejo é a morte!
- Pois posso concedê-la a você.
- Mentiroso. O demônio sempre mente...
- Esqueça suas aulas de catecismo. Já fazem pelo menos três séculos que você não se considera cristão, ou de qualquer outra religião...
- Diga o que quer ou vá embora!
- Ah, curioso agora? Pois bem. Eu posso lhe conceder a morte. Mas você deve me convencer que realmente merece meu presente.
- Como? Eu já tive que matar nesta vida... às vezes por defesa, outras por pura loucura... Tenho muitos pecados!
- Não foi o suficiente. Me agrade e a morte lhe receberá. Eu garanto.
- Você é a morte?
- Não. Mas posso lhe levar até ela.
- Então faça AGORA! EU IMPLORO!
- Faça por merecer. Além disso, outros buscam pela minha atenção e meus presentes... talvez você não seja o melhor deles. Talvez outro seja mais digno...
- O quê devo fazer?
- Use sua imaginação. Pense em algo...

          Silveira sente sua cabeça ferver. Aquele estranho homem, surgido do nada, batera em sua porta esta manhã e simplesmente sabia tudo a seu respeito. Seus instintos lhe diziam se tratar de um demônio, mas mesmo para quem viveu quatro séculos e viu muita coisa, ele não tinha certeza disso.
          Quatro séculos... o suficiente para ver todas pessoas amadas sucumbirem. O suficiente para conhecer o melhor e o pior dos homens. O suficiente para se cansar da maldição de não poder tocar em nenhum ser vivo.
          Súbito, a decisão está tomada. Silveira levanta-se e diz:

- Me espere aqui. Quando eu voltar, a morte me aceitará.

          Melkart, o visitante, assente com a cabeça. Seu sorriso impenetrável continua a incomodar Silveira.
          Silveira apanha um casaco e sai pela porta da pequena cabana.


          Quatro horas se passam. Melkart observa impassível pela janela da cabana de Silveira. Em sua face, nenhum sentimento é demonstrado, e suas intenções são insondáveis.
          Finalmente a porta da cabana se abre e um amaldiçoado Silveira entra e se joga sentado no chão. Seus olhos refletem o mais puro horror.

- E-está feito... – murmura Silveira.
- Sim, eu senti o impacto de seus atos – responde Melkart.
- Sentiu? Então sabe o que eu fiz? – Silveira não consegue tirar os olhos do chão. É impossível encarar Melkart.
- Sim. Achei que foi um grande esforço de sua parte.
- GRANDE ESFORÇO??? – Silveira levanta-se e avança agarrando Melkart pelo colarinho - É TUDO O QUE TEM PARA ME DIZER?
- Ora, - Melkart encara Silveira nos olhos – deseja que eu lhe dê parabéns por ter chacinado toda a população da vila mais próxima? Parabéns por ter matado homens, mulheres e crianças, sem discriminação, sem hesitação? Você matou quase duzentas pessoas, apenas lhes tocando... acha que é um grande feito?
- Agora tenho certeza... Você É o demônio! Meu Deus... vejo o rosto de cada um daqueles que toquei. E-eu matei... crianças inocentes! Bebês até!
- Cada um tem seu demônio, Silveira. Talvez eu seja o seu. Mas sou um homem de palavra.
- Vai me dar a morte?
- Sim, claro.
- ENTÃO FAÇA LOGO! EU QUERO MORRER AGORA!
- Receba esta marca – dizendo isto, Melkart toca no braço direito de Silveira. O imortal sente a dor de uma queimadura e quando o visitante retira a mão, Silveira percebe uma tatuagem em forma de serpente no seu braço.
- Minha pele vai regenar. Essa marca vai sumir. – diz o imortal.
- Não. Ela está gravada na sua alma. Você agora terá o prêmio que tanto pediu. Mas deve me encontrar num lugar apropriado.
- Você prometeu me matar! Eu exijo...
- Claro. Mas isso não pode ser feito em qualquer lugar. Eu lhe mandarei instruções sobre como chegar em um local de poder, onde poderei libertar você do peso da imortalidade. Acalme-se, homem imortal... você terá seu descanso.
- SIM! SIM! É o que eu quero!
- Aguarde minhas instruções. Em breve nos reencontraremos.

          Um vento frio escancara a porta da cabana e Silveira volta-se para fechá-la. Ao olhar de volta, o misterioso visitante Melkart desaparecera.

- Era o demônio. Eu tenho certeza. Pois que seja... Pois que eu vá para o inferno. Chega desta existência! Chega deste mundo! Eu irei ao seu encontro Melkart, e por bem ou por mal, você me libertará desta existência.

FIM?


Max abriu os olhos quando a luz do sol bateu diretamente na sua cara. Resmungou contrariado consigo mesmo por ter se esquecido de fechar a cortina da janela na noite anterior. Com um movimento lento, sentou-se na cama. A boca amarga pedia pela escovação matinal. Espreguiçou-se e, em seguida, jogou-se no assoalho. Fez as cinquenta flexões costumeiras tentando lembrar se tinha pó de café em casa.
Caminhou até a janela e olhou em volta. O céu apresentava poucas nuvens e exibia um azul cheio de vida. Olhou para baixo. Tudo parecia normal. Dali, do segundo andar da confortável casa que fechava a vila, podia observar o jardim e sua fonte, os muros altos, protegidos pela cerca elétrica, e o portão de ferro que encerrava o terreno largo.
Inspirou com satisfação o ar da manhã.
Sentiu vontade de urinar. Subiu no parapeito, agarrou-se à janela e baixou a bermuda. Deixou o mijo jorrar à vontade. Até a última gota. Balançou-se, subiu a bermuda e desceu da janela. Foi até o banheiro, onde escovou os dentes com calma e tomou uma ducha rápida. Voltou ao quarto envolto na toalha para apanhar uma bermuda limpa e passou em frente à janela.
Algo chamou sua atenção. Recuou um passo, voltando para a janela.
Espremeu os olhos, tentando fixar a visão. Lembrou dos binóculos que estavam sempre ali, ao pé da janela. Apanhou-os rapidamente e ajustou o foco.
Ela estava lá. No portão.
Cabelos negros, lisos e longos, escorridos sobre a blusa que um dia havia sido branca e que agora, tanto quanto a calça jeans que vestia, estava empapada de sangue e lama. E mesmo sem boa parte do lado esquerdo do tórax, ela se balançava segurando a grade do portão. Era Daniela.

- Vai trabalhar, vagabunda – disse Max, jogando os binóculos na cama.

Vestiu uma bermuda limpa, uma camisa leve de algodão, calçou as sandálias e apanhou o rifle. Checou se as janelas dos outros dois quartos do andar superior continuavam trancadas e desceu. Como de costume, verificou as trancas da porta da frente e das duas portas dos fundos. Prosseguiu para as janelas. Tudo em perfeito estado. Completado o “tour” matinal, foi até a despensa e apanhou um pote de café solúvel, uma caixa de leite e um pacote de bolachas de água e sal.

- Vamos esbanjar um pouco, por que não?

Colocou o rifle sobre a mesa e preparou rapidamente o café simples. Em seguida sentou-se e comeu pacientemente.
Foi até a estante de apanhou um blu-ray da pilha. “Torneio Mortal 8”. O último da série, lógico. Enquanto colocava o cd no player, ficou imaginando se o protagonista da série, o ator Jason Crusher ainda estava vivo por aí, matando zumbis. Ah, um cara durão como ele devia estar. Com certeza estava. Imaginou Jason matando a zumbizada adoidado, salvando as últimas mulheres vivas do mundo e sendo bem recompensado depois.
E ele ali sozinho.
Algumas coisas nem o apocalipse zumbi mudava.
Lembrou de Daniela e decidiu dar uma olhada no portão da frente antes de sentar para assistir ao filme pela décima terceira vez. Saiu da casa carregando o rifle. Atravessou o jardim com passos largos. Ela não estava no portão.

- Dani? Ei, dani? – chamou falando baixo.

Foi então que ouviu os ruídos. Levantou o rifle e ficou em posição de tiro. Aproximou-se cuidadosamente da grade do portão.
O corpo de Daniela estava espalhado pelo chão. Seus braços estavam jogados à esquerda, enquanto o restante recebia rápidas e incisivas machadadas de um homem desconhecido. Com três golpes ele dilacerou a cabeça da zumbi.

- EI! EI! Pára com isso, cara! Porra! – gritou Max.

O homem, como despertado de um transe, olhou para ele com olhos vermelhos e esbugalhados. Parecia um mendigo com aquela barba desgrenhada e cabelos encaracolados. Suas roupas eram simples e sujas e o machado na mão completava aquele quadro típico de psicopata de filme americano. Hesitou um pouco, como se mal compreendesse que Max não era outro zumbi. Então conseguiu falar:

- Calma, irmão! Calma! Ela era zumbi! Não era gente, não!
- Eu sei que ela era zumbi. E faz tempo. Pelo menos dois meses... – respondeu Max ainda mirando o homem.
- E-eu queria entrar e ela tava na frente, forçando o portão...
- Pff... Ela nunca conseguiria arrombar esse portão. Nem quando tava viva.
- V-você... conhecia ela?
- Ah, conheci, sim.
- Oh, e-eu... e-eu... me desculpe... ela me viu... ia me morder...
- Tá, cara. Eu sei que ela ia te morder...
- Então tem que entender... eu só me defendi! Você teria fe...
- Porra, eu disse que conhecia, e não que era amigo dela. Na verdade, ela era uma das vagabundas mais boçais que já conheci, então, que se foda.
- Parente? Vizinha?
-Ah, Vizinha.

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, observando os pedaços de Daniela.

- Hm, então... Meu nome é... – principiou o mendigo.
- Para, para... não me interessa.
- O quê?
- Não me interessa o teu nome.
- Mas, eu... Você pode abrir o portão?
- Tá doido?
- Hã?
- Olha, cara, eu não vou abrir essa porra de portão, não.
- M-mas eu preciso entrar! Aqui fora tá cheio de zumbi! Você é a primeira pessoa viva que vejo em três dias!
- Vou te dizer uma coisa: te manda.
- Não faz isso, cara. Abre o portão, por favor! Peloamorde...
- Agora todo mundo é cristão... Sai fora, cara! Tu já me deu prejuízo bastante.
- Prejuízo? Como assim?
- Tá vendo aqueles sacos de areia lá na entrada da vila? Aqueles que tu tirou do lugar pra entrar?
- Sim...
- Pois é, EU que botei eles ali. Fileiras de cinco sacos empilhados já barram a maioria dos zumbis que perambulam por aí. E tu desarrumou.
- Eu arrumo de volta! Eu juro! Só abre o portão!
- Não é só isso, cara. Eu deixava a fedorenta aí do lado de dentro da vila por que ela se balançando por aqui não atraía a atenção de outras pessoas. A maioria passaria, veria como um lugar abandonado ou contaminado e iria embora. E tu acabou com a minha funcionária.
- ...
- Entendeu, né? Não tô a fim de companhia... Quer dizer, tô, mas tem que ser mulher.
- Não é possível... Você não está entendendo! Se eu ficar aqui fora, vou morrer!
- Vai mesmo. Se ficar AÍ fora, EU te dou um tiro no meio da cara. Vai, anda, some!

Max apontou a arma para a cabeça do mendigo. O homem segurou o machado com força. Quase cedeu a um impulso louco de arremessar o machado, arriscando a mínima chance de um arremesso perfeito que fizesse a ferramenta passar pela grade e acertasse a cabeça de Max. Quase. Sentiu uma raiva impotente.

- Não faz isso... me ajuda... – ainda lamuriou o mendigo.
- Sai fora – respondeu Max.

Pesaroso, o mendigo olhou em volta em busca de alguma ajuda que não viria. Algo inesperado que convencesse Max a abrir o portão. Sem ajuda e sem acontecimento inesperado, apenas com a boca do rifle lhe encarando, deu as costas e começou a caminhar em direção à saída da vila. Com trinta passos alcançou a linha dos sacos de areia.
Max continuou observando pela mira telescópica o mendigo se afastar. O homem havia parado logo após a entrada da vila e parecia avaliar em que direção deveria ir e olhava desorientado de um lado para outro.
“Tsc, vai logo embora. Não me arranja mais problema.”
O mendigo continuava parado, de costas para a vila.
“Ah, cara. Some duma vez.”
Coçava a cabeça. Apertava o estômago.
“Não tenha ideias. Não pense em como estou limpo, ou em como pareço bem alimentado...”
O mendigo na entrada da vila olhava para o céu. Parecia mais cansado ainda.
“...não imagine que tenho uma despensa grande, ou segurança...”
“...ou que poderia voltar a noite e acabar comigo pra ficar com tudo...”
O disparo fez a cabeça do mendigo explodir. Pedaços do seu cérebro e ossos foram cuspidos até o outro lado da rua. O corpo tombou na calçada.
Max continuou observando ainda por vinte minutos para se certificar de que nenhum zumbi havia sido atraído pelo disparo. Nenhum morto-vivo apareceu. Talvez a vizinhança estivesse melhorando.
***
O dia passou rapidamente. Havia assistido ao “Torneio Mortal 8” antes de almoçar. Depois subira até o telhado, onde ficou plantado por horas, vasculhando os arredores com os binóculos em busca de qualquer movimento estranho. Detectara alguns zumbis se arrastando a esmo, mas nada preocupante. Nenhum sinal de vivos. Ao entardecer, desceu até um dos quartos, convertido em sala de musculação, e realizou uma série de exercícios com pesos.
Tomou um banho demorado. Passou pelo corredor ignorando as cinco longas prateleiras recheadas de livros. Procurou novamente por algum filme decente na pilha, mas desta vez encontrou apenas filmes estranhos ou que pareciam ter sido feitos especialmente para mulheres ou homossexuais. Resolveu que no dia seguinte iria até a loja de dvds do outo quarteirão. Poderia dar sorte desta vez e os zumbis já terem abandonado o local.
Verificou todas as portas e janelas da casa. Fechou uma por uma antes de tirar um cochilo. Dormiu por algumas horas e, quando acordou, já era próximo de meia-noite. Decidiu montar guarda no telhado novamente. Vestiu uma calça e uma camisa pretas e subiu.
Caminhou cuidadosamente como sempre sobre as telhas coloniais até o local onde costumeiramente montava sentinela. Sentou-se sobre a lona que mantinha no local e cruzou as pernas. Algumas luzes das ruas ainda acendiam automaticamente ao anoitecer e forneciam alguma iluminação, então a escuridão não era total.
Observou a entrada da vila com o binóculo. Uma mulher loura estava de pé observando o corpo do mendigo.
Max aumentou o zoom. A mulher não se arrastava como um zumbi. Ela respirava pesadamente e estava apoiada nos sacos de areia. Parecia muito cansada. Ela olhou para a vila. Parecia curiosa.
Max apanhou rapidamente a lanterna que mantinha no telhado. Suas mãos tremiam. Hesitou. Seria uma mulher viva mesmo? E se ela estivesse infectada? E se fosse alguma louca? E se estivesse armada? Deveria fazer contato ou deixa-la ir?
Parte da decisão foi tirada de suas mãos, pois a mulher rapidamente decidira entrar na vila e começou a correr até o portão. Movimentando o binóculo, Max descobriu o porquê. Dois zumbis haviam percebido a mulher e agora se aproximavam dos sacos de areia.
Max resolvera arriscar. Se não fosse a escuridão, atiraria do telhado mesmo, mas o rifle não tinha mira de visão noturna. Decidiu descer e fazer alguma coisa. Desceu aos tropeções.
Quando Max chegou ao jardim, a mulher já tentava inutilmente forçar o portão, enquanto chorava desesperada. Ao ver o homem, seus olhos se arregalaram e uma fagulha de esperança atravessou seu rosto.

- Ei! Me ajude! ME AJUDE! – ela resolveu gritar.

Max correu até o portão. Ergueu o rifle e fez mira no zumbi mais próximo, que já alcançara a metade do caminho da entrada da vila até o portão da casa. Fez um disparo preciso. O zumbi caiu para trás, por cima do outro que se aproximava. O segundo zumbi tropeçou sobre o primeiro e caiu de cara as pedras que calçavam a rua. Mesmo assim o morto-vivo não perdeu tempo em tentar se arrastar até a pretensa vítima, deixando um rastro de sangue, saliva e outros fluidos corporais. Um segundo disparo de Max encerrou o esforço da criatura.
A mulher tremia da cabeça aos pés. Segurava a grade do portão com tanta força que os nós dos dedos estavam esbranquiçados.

- Abre! Abre! Abre! – pediu ela murmurando alucinadamente.
- Calma! Eram só esses dois aí. Não tem mais nenhum na vila – disse Max.
- ABRE! ABRE!
- Peraí, calma. Não é assim, não...
- Abre, por favor! ABRE!
- Olha, moça... Eu posso abrir... Mas antes tenho que ter certeza de que você não foi mordida por nenhum desses bichos...
- ABRE!
- Não tá me ouvindo, não? Sem ter certeza que você tá limpa, eu não abro.
- Eu não fui mordida! Abre!

Max ligou a lanterna e iluminou melhor a mulher. Ela aparentava cerca de vinte e cinco anos, tinha cabelos louros e médios, olhos azuis. Vestia uma blusa amarela e calças jeans. Devia ter cerca de um metro e setenta e parecia um pouco magra para a altura, mas, nesses dias difíceis, ninguém era exemplo de boa forma.

- Tá... Mas eu tenho que ter certeza, entende? – insistiu Max.
- Eu já disse que...
- Tira a roupa.
- O quê?
- Tira a roupa. Toda. É o único jeito de eu ter certeza de que não tem nenhuma mordida.
- Seu filho da puta...
- Não engrossa, não. Tô te dando uma chance.

Barulhos distantes apressaram a decisão da mulher. Com rapidez ela tirou a blusa e jogou-a no chão. Abriu a calça jeans ao mesmo tempo em que esfregava os pés para tirar os tênis. Tirou a calça e encarou Max vestindo apenas o sutiã e a calcinha brancos.

- Eu falei tudo, não enrola – reclamou Max.
- Seu psicopata desgraçado! Olhe! Olhe! – vociferou a mulher, dando voltas e exibindo o corpo sob a luz da lanterna.
- Tudo. Ou some.

Com ódio nos olhos, a mulher tirou o sutiã e a calcinha com violência, expondo-se totalmente.
Excitado com a situação, Max gesticulou para que ela fizesse uma volta completa lentamente. Pediu para ver até os solados dos pés. Realmente, constatou com alívio, ela estava limpa.

- Junte suas roupas. Vou abrir o portão. Depressa!

Max abriu os cadeados e desenrolou a corrente com destreza. Moveu o portão apenas o suficiente para a mulher nua passar, carregando suas roupas. Fechou-o em seguida, certificando-se três vezes de ter trancado todos os cadeados.
A mulher vestiu-se desajeitadamente. Em seguida ajoelhou-se no gramado. Arfava pesadamente. Tremia. Caiu num choro incontrolável. Max receou que ela convulsionasse.

- Hã... é melhor a gente entrar... O barulho e o movimento podem atrair a atenção... – disse.

A garota procurou controlar-se. Tentou suprimir o choro, enquanto limpava as lágrimas dos olhos com as costas das mãos. Balançou a cabeça, concordando com o homem. Levantou-se devagar e pôs-se a caminhar em direção a casa.
Max seguiu-a mantendo três passos de distância. Ela parecia ainda menor do que ele avaliara. Calculou que, se precisasse, poderia dominá-la sem grande esforço. Mas teria que cuidar para que ela não encontrasse nenhuma arma. Não facilitaria com a estranha.
Lentamente ela chegou até a varanda larga. Olhou rapidamente para os dois Corollas na garagem e foi direto para a porta de vidro da casa. Empurrou a porta rapidamente e entrou. Max passou logo em seguida e fechou a porta atrás de si.

- Bem vinda à minha humilde residência – disse Max.

A mulher nada disse. Apenas olhava em volta, mapeando o ambiente.

- Quer comer alguma coisa?
- E-eu... quero.
- Beleza. Senta aí. Vou buscar.

Sem dar as costas para a mulher, Max baixou o rifle sob o balcão da cozinha. Tirou do armário e colocou no micro-ondas uma lasanha pronta. Enquanto a comida era preparada, observava constantemente a visita pela abertura do balcão que fazia ligação da cozinha com a sala. A mulher continuava examinando o ambiente com os olhos. Max abriu a gaveta de talheres e apanhou uma faca e uma colher. Colocou a faca escondida na própria calça e baixou a colher sobre o balcão. Após o “bip” do micro-ondas, retirou a lasanha do aparelho e despejou sobre uma travessa. Juntou a colher, uma cerveja razoavelmente gelada e levou tudo para a companhia inesperada.
A mulher agarrou a comida e devorou tudo em segundos. Bebeu a cerveja de um só gole também.

- Ei, calma. Aprecia a comida que não é todo dia que vai ter esse luxo – reclamou Max.

Mesmo assim ela não diminuiu o ritmo. Só olhou para Max depois que terminara toda a refeição. Lambia os dedos quando perguntou:

- Como... Como você ainda tem essas coisas? Lasanha quente, cerveja gelada?...
- A despensa tá cheia. E tenho um gerador a diesel lá nos fundos. Deixo ligado algumas luzes, a geladeira e a tv. No ritmo que eu uso, o diesel deve durar mais um ou dois meses.
- Hmm... E... Há quanto tempo está aqui?
- Hã? Ah... Eu... Eu moro aqui faz cinco anos... É...
- Cinco anos... Tá sozinho?
- É, tô... Tinha família, mas todo mundo se mandou quando deu a merda zumbi dois meses atrás. Eu preferi ficar. Tenho tudo aqui e é melhor do que virar fugitivo pelo mundo. Além dos zumbis deve ter muita gente maluca lá fora. E você?
- Eu morava em uma cidade próxima. Estive tentando voltar já faz mais de um mês, mas tudo lá fora está louco mesmo...
- Ei, qual teu nome?
- Ah, é Claudia.
- Beleza, Claudia. Sou o Max. Desculpe o mau jeito, mas a situação tá foda...
- Não, tá... Eu entendo... Obrigada por me deixar entrar.
- É... Hã... Sabe como é, um pouco de companhia sempre é bom...

Max não pôde evitar olhar para Claudia da cabeça aos pés. Ela lhe parecia a mulher mais bonita do mundo, e talvez fosse, levando em conta que só tinha encontrado mulheres aos pedaços nos últimos meses. Percebendo seu olhar intimidador, Claudia abraçou o próprio corpo.

- Er... Quer tomar um banho? Tem um banheiro aqui e mais dois lá me cima. E tem um armário cheio de roupas da minha... mãe... que você pode usar também.
- Quero... obrigada...

Max levou à Claudia até uma das suítes vazias do andar superior. Deixou que ela subisse na frente e manteve os olhos sempre vigilantes.
Claudia entrou no quarto cautelosamente. Olhou para as paredes forradas com um papel decorativo cor de rosa, cheio de flores amarelas. Uma cama de solteiro muito bem arrumada estava colada a uma das paredes. Parecia intocada há muito tempo, mas a janela fechada não tinha deixado acumular tanta poeira nela. Um grande guarda-roupa branco dominava toda uma parede do quarto e, do outro lado, uma penteadeira branca e vazia com um grande espelho refletia Claudia.

- Nesse guarda-roupa aí tem muita roupa de mulher. Não sei se elas são do seu tamanho, mas aí também não dá pra exigir muito, né? Pega o que quiser. O banheiro é ali – disse Max apontado para a porta ao lado da penteadeira.

Claudia apenas balançou a cabeça em sinal de entendimento, sem se virar para Max.

- Hã, ok... Vou te deixar à vontade. Vou ficar por aí... Qualquer coisa, me chama.

Desta vez ela não respondeu. Apenas permaneceu de pé, imóvel. Max encostou a porta com cautela. Recuou até a escada sem dar as costas para a porta do quarto. Não podia saber se Claudia era alguma maluca, nem pelo que ela tinha passado lá fora e o que isso tinha feito com a cabeça dela. Todo cuidado era pouco. Mas teriam tempo para conversar e ele descobriria tudo. Isso. Conversariam. Ela relaxaria e eles ficariam numa boa.
Pensou em trancá-la no quarto, mas isso poderia deixa-la mais estressada. Resolveu trancar seu próprio quarto, onde ficava a munição e o revolver. Desceu e trancou a gaveta de talheres, examinado se nenhuma faca havia ficado largada pela cozinha. Tudo limpo. A única faca que restara era aquela escondida nas suas costas.
Max escutava atentamente, sentado ao pé da escada, mas passou-se uma hora sem qualquer indicio de movimento no andar superior. Ele estava excitado pela presença da mulher, mas ao mesmo tempo assustado. Fazia tempo que não convivia com outra pessoa. Aguardou.
Uma hora depois, quando o relógio bipou duas da madrugada, decidiu subir. O suspense o estava matando. Retirou a faca do cós da calça e pisou pé ante pé, procurando minimizar qualquer ruído, até alcançar a porta do quarto de Claudia.
A porta estava fechada. Segurou a maçaneta com firmeza e girou-a lentamente. Abriu a porta alguns centímetros. Foi o suficiente para perceber a mulher deitada na cama. Max soltou o ar, aliviado. Ela estava deitada de costas para a porta, as pernas encolhidas. Ela vestia uma camiseta branca e um short curto, de tecido leve e semitransparente.
Max entrou no quarto, hipnotizado pela imagem da mulher deitada ali. Segurava a faca com a mão trêmula de excitação. Aproximou-se da cama e sentiu o perfume que exalava daquele corpo recém banhado. Fresco, cabelos úmidos ainda, cheiro de creme hidratante. Quase podia sentir a maciez daquela carne mesmo sem tocá-la. Ajoelhou-se ao lado da cama.
Estendeu a mão livre e desenhou no ar o contorno do corpo feminino. Não resistiu mais e tocou no braço de Claudia com a ponta dos dedos. Nenhuma reação. Desceu os dedos pelo braço longo e firme. Espalhou os dedos sobre a cintura dela, massageando de leve, sentindo cada centímetro daquela pele alva. Claudia gemeu baixinho. Então o homem passou a mão pela nádega dela e apertou-a firmemente. A mulher gemeu e estendeu as pernas. Max continuou a exploração descendo a mão pela coxa roliça. Claudia virou-se para cima. Seus olhos azuis pareciam brilhar na penumbra. Max baixou a faca e tratou de apalpar os seios médios da loura. Claudia abriu as pernas facilitando o toque do ansioso homem. Max não perdeu tempo, mergulhou a mão entre as pernas da mulher. Claudia contorceu-se e gemeu, aumentando a excitação do momento. A loura passou o braço pelos cabelos de Max, descendo pelo rosto até o pescoço, agarrando-o com firmeza. Max desceu em busca de um beijo. Claudia envolveu-o com os dois braços e puxou-o para si. Quando o sangue quente jorrou, molhou a ambos. A dor começou no pescoço de Max e logo se estendeu por toda a cabeça. A tontura o atingiu rapidamente e ele tombou para trás, ainda ajoelhado.
Claudia sentou-se rapidamente na cama. Estava banhada de sangue. Apertava com força o canivete com que perfurara o pescoço de Max.
Max olhava atônito para a lâmina. Sua mente, mesmo confusa, tentava descobrir de onde havia surgido aquilo. Tinha certeza de ter reunido qualquer arma ou instrumento pontiagudo que estivesse espalhado pela casa fazia semanas. Nunca tinha visto aquele canivete de cabo vermelho. Nunca.

- Sei o que está pensando... O canivete estava aqui. Debaixo da cama. Colado com fita adesiva no estrado – disse Claudia friamente.

Max começou a afogar no próprio sangue. Tentou, mas não conseguia falar.
Claudia levantou-se. A luz da lua que iluminava seu corpo ensanguentado lhe dava um ar macabro, como uma vampira de filme de terror.

- Sabe como encontrei o canivete? É simples. Ele é meu. Está aqui desde os meus quinze anos.

Dor. Dor era tudo o que Max sentia.

- Uma vez, voltando da escola pra casa, fui assaltada ali na porta. O marginal levou a minha bolsa e ainda me apalpou. Fiquei puta da vida. Aí comprei esse canivete e passei a andar com ele no bolso. Um dia, pra minha sorte, o mesmo safado voltou a tentar me assaltar. Era muita coragem do marginal... Só que dessa vez enfiei o canivete na mão dele. O pivete gritou como um doido. Acho que ele nunca tinha sido ferido. Saiu correndo... Aí meu pai descobriu que eu tinha o canivete. Me proibiu de usá-lo. Exigiu que eu o jogasse fora. Mas preferi guardar como recordação. Aí escondi no estrado da cama. Sempre fui assim, sabe? Meu pai me chamava de “rebelde”, “estúpida”... Por isso saí de casa logo que pude. Meu pai não me perdoou. Parou de falar comigo e pelo visto eliminou todas as minhas fotos da casa. Minha mãe ainda mantinha contato e eu, apesar de tudo, sempre me preocupei com eles...

As luzes piscavam em frente aos olhos de Max. Não conseguia ouvir direito o que aquela mulher estava falando.

- Então, você imagina a minha “alegria” ao ver a casa dos meus pais invadida por um filho da puta como você, desfrutando de todo o conforto que eles tinham e se passando por dono de tudo... Sei que eles não estavam aqui quando tudo começou, pois estavam visitando alguns parentes nossos em Campinas. Pode ser que estejam mortos, não sei... Mas com certeza não te deram a casa.

Max podia ver o dia em que encontrara a casa. Confortável, bem localizada, ampla e, principalmente, segura. Despensa cheia, gerador de energia. Coisas de rico. Coisas que agora ele poderia ter.
Mas tudo que é bom, dura pouco, não é?
Max tombou inerte para trás. Soltou um último gemido quando o ar foi expulso dos seus pulmões.
***
            Algumas nuvens teimavam em encobrir o sol, mas mesmo assim ela ajeitou a alça do biquíni e deitou-se sobre a espreguiçadeira. Estendeu a mão para pegar a cerveja, resvalando os dedos no rifle. O pequeno aparelho de som tocava um cd da banda Delete, que era uma de suas favoritas, mesmo que sua mãe sempre chamasse aquilo de “música para idiotas”.
            Subitamente ouviu alguns ruídos vindos do portão. Virou-se e percebeu dois zumbis empurrando-se contra a grade. Levantou-se, empunhando o rifle, e fez mira.
            
            - Desculpa, pessoal, mas a festa é particular.
            
             BLAM.


FIM

Londres, 2055.

A chuva caía inclemente sobre a cidade. Pesadas nuvens rodopiavam sobre a metrópole, despejando sua carga líquida, alheias aos dramas e necessidades que aconteciam nas ruas abaixo. A lua, totalmente encoberta pelo céu tempestuoso, nada podia fazer para diminuir a escuridão que assolava o homem que corria alucinadamente por uma das vielas de Londres.
O homem corria o mais rápido que podia. Gostaria de correr bem mais rapidamente, mas sabia que isso era impossível, pois sua preciosa carga poderia ser perdida. O andarilho atravessou uma viela estreita situada entre dois prédios e surgiu numa rua secundária. Ele estancou por um momento. Não havia trânsito, como ele já esperava. Aquele setor da cidade era praticamente despovoado, pois estava marcado como uma das áreas destinadas à “realocação urbana planejada”, um nome pomposo que o governo criara para despejo coletivo e expulsão. Mesmo a área possuindo um grupo ou outro de miseráveis e marginais, nenhum deles ousaria desafiar o toque de recolher. Apenas os imensos banners de propaganda que exibiam a imagem do Imperador Max Dittrich, líder inquestionável de Nova Saxônia, encaravam o andarilho. O silêncio só era cortado pelo ruído da chuva e pelo som distante do trânsito além da linha de exclusão que cercava o bairro.
A água escorreu pelos longos cabelos lisos do homem e atrapalhou sua visão. Com a costa da mão direita ele removeu os cabelos do rosto. Rapidamente apanhou do bolso superior do casaco o pequeno uPAN – Navegador e Agente Pessoal, com localizador GPS plugado à rede pirata Undernet –, buscando orientar-se novamente. Infelizmente o aparelho pouco lhe ajudou, pois o mapa da área estava completamente desatualizado, exibindo ruas e marcações datadas de 2045, bem anteriores às alterações feitas pelo atual governo. Praguejando, ele observou a quadra e em um instante percebeu uma saída pela esquerda, um beco completamente escuro. Ele mal pôde divisar os contornos das caçambas de lixo e não lhe agradou a ideia de correr pelo caminho desconhecido, porém, a alternativa seria prosseguir pela rua, a céu aberto, o que com certeza facilitaria que fosse encontrado. Decidiu mergulhar na escuridão, buscando afastar-se das luzes da precária iluminação pública. Com passos largos, mas cautelosos, ele avançou pelo beco, procurando não colidir com nenhuma das caçambas.
Subitamente, uma coluna de luz varreu a entrada do beco às suas costas. O som de jatos planadores deixou claro que era questão de instantes até que fosse localizado. Ele apertou a carga contra o peito e contornou uma caçamba, tateando a parede em busca de algum refúgio.
               Ele não conseguiu conter um profundo suspiro de alívio quando seus dedos encontraram o contorno de uma porta. Agindo instintivamente, ele recuou e em seguida deu um forte chute na porta. A entrada cedeu e, felizmente, nenhum sinal de alerta soou. O homem entrou de imediato, e tornou a fechar a porta atrás de si, apoiando-a com seu próprio corpo. Pela luminosidade que atravessava as frestas da porta ele pôde perceber que o facho de luz vindo do céu varria completamente o beco, eliminando qualquer sombra protetora que pudesse haver ali.
               Felizmente nenhuma patrulha terrestre resolveu participar da perseguição até o momento. Parecia que eles esperavam localizá-lo pelos ares para então desembarcar os caçadores. Se fosse assim, estaria seguro por algum tempo.
               Agarrou uma estante vazia e puxou-a, sem esforço, até escorar melhor a porta arrombada. Em seguida, olhou em volta e mapeou a sala onde estava. O local parecia ter sido usado como depósito de alguma antiga empresa, pois possuía algumas caixas padronizadas amontoadas junto às paredes, além de três estantes metálicas vazias e uma mesa comprida. Papéis esquecidos estavam jogados por todos os lados, completando o cenário de abandono. Na parede oposta, o invasor percebeu uma porta de vai-e-vem fechada, coberta por teias de aranha.
               Um pouco mais relaxado, o homem caminhou até a mesa e retirou a carga que abrigava sob o casaco. Seu braço esquerdo formigava devido às quase duas horas em que carregava sem descanso o pacote. Tirou a alça dos ombros e depositou o embrulho sobre a mesa. O pacote era uma manta térmica isolante e media cerca de cinquenta centímetros de comprimento. O homem apertou o botão do fecho automático e a manta se abriu até a metade, como uma flor desabrochando.
               Revelou um saudável bebê com brilhantes e curiosos olhos azuis. Não devia ter mais do que poucas semanas de nascido.
               Sob o casaco, o uPAN vibrou chamando sua atenção do fugitivo. Ele verificou o número no display e atendeu prontamente.
- Onde você está? – perguntou a voz feminina do outro lado da ligação.
- Atrasado. Mas devo alcançar o ponto de encontro em cerca de uma hora.
- Me dê sua localização. Vou buscá-lo.
- É muito arriscado... Aguarde-me.
- Mordred, como ele está?
- Perfeitamente bem. Não se preocupe.
- Como se isso fosse possível...
- Mais alguma coisa?
- Aguardarei apenas mais uma hora. Depois disso e...
               Mordred desligou antes que a frase fosse terminada. Sabia o que estava em jogo e não gostava de recomendações desnecessárias. Virou-se para o bebê, que o encarava com um olhar enigmático.
 - Sempre me dando trabalho, hein, Artur?...

***
Cornualha, num tempo já esquecido...

               O casal de andarilhos avançava pela floresta com determinação. A mulher que ia à frente indicando o caminho não hesitava em momento algum. Parecia conhecer de cor cada pedra daquela trilha. Era morena e aparentava cerca de trinta e cinco anos, possuía estatura mediana e corpo esguio, coroada por compridos cabelos lisos, tão negros como o vestido que usava, o que a tornavam uma mancha sombria em movimento, destacada contra a floresta verdejante. Seu belo rosto era marcado por olhos castanhos ágeis e inquietos, que percorriam cada centímetro da paisagem.
               O homem que a seguia era igualmente moreno, porém mais alto que a mulher. Seus cabelos eram negros, cortados à moda dos cavaleiros, e vestia uma túnica marrom. Seus olhos azuis pareciam duas pedras de gelo e deixavam transparecer seu desconforto em estar ali. Vez ou outra tocava o cabo da espada que trazia na cintura, como se desejasse certificar-se de que ela continuava ali.
- Já andamos bastante, não acha? – reclamou o homem.
- Reclamas demais, meu filho. Aliás, eu já lhe disse isso, não? – respondeu a mulher.
- Várias vezes. Mas não pode me culpar pela minha impaciência. Já faz algum tempo que me prometeu um reino, e não um passeio pela mata...
- Mordred, meu pequeno...
- Morgana, minha mãe...
- ...tens passado muito tempo na companhia de teu pai. Estás pensando apenas em quantas espadas, armaduras ou cavalos podes juntar. Coisas tão materiais e corruptíveis...
- Espadas e cavalos são necessários em qualquer guerra. E eu, lamento dizer, não possuo nenhum dos dois em quantidade suficiente para depor meu pai Artur.
- Aço e carne são as armas do homem comum e o tempo consome a ambos igualmente. Mas o verdadeiro poder, ah, este reside dentro da alma do homem que ousa buscá-lo. Escuta-me, Mordred.
- Escutá-la é o que tenho feito a vida inteira.
- Não parece, pois não aprendestes nada. Escuta, por que achas que os homens seguem teu pai?
- Por que ele é o rei, oras. Que pergunta simplória, Morgana.
- Ignóbil. Cada vez me decepcionas mais. Artur é rei, de fato, mas a nobreza que faz com que os homens o sirvam reside em sua alma. Ainda que ele não possuísse um mero sítio para criar porcos, os homens o seguiriam.
- Bobagem!
- A alma de Artur possui uma distinção, filho surdo. Ele foi marcado pelos deuses desde a concepção. Ele é um predestinado.
- Predestinado a reinar, enquanto eu, seu filho legítimo, sou destinado a vagar como um bastardo...
- Os deuses brincam com os homens, Mordred. Esta é outra lição que não deves esquecer. Porém, existem aqueles que se recusam a participar do jogo que lhes é imposto e descobrem maneiras de extrapolar o papel que os deuses determinam.
- Pessoas como tu, Morgana?
- Sim, exatamente. Eu sei o que os deuses esperam de mim, e me recuso a desempenhar tão ridículo papel. E tu também, Mordred. Tu, sangue do meu sangue.
- Não me parece que tenhas feito um bom trabalho para escapar de teu destino, Morgana. Eu mesmo, que sigo teus planos, tenho que me contentar em parecer um servo fiel do rei, apenas mais um entre tantos que bajulam Artur. Afinal, aqui estamos, perambulando por estas paragens ermas enquanto o rei e seus devotados amigos desfrutam dos prazeres do poder.
- Cala-te. Chegamos.
               Por alguns instantes o filho de Artur teve a impressão de que a gruta surgira do nada. Uma gruta quase completamente coberta pela mata, capaz de passar despercebida por pessoas menos atentas. Mordred encarou a entrada sombria e olhou incrédulo para Morgana.
- “Chegamos” onde? A este buraco no meio do nada?
- Basta de insolências, tolo. Entremos.
               Morgana afastou-se dando passagem para o filho. Mordred sacou sua espada e, com quatro ou cinco gestos rápidos, cortou parte do mato e das ervas daninhas que cobriam a entrada da gruta. Morgana adiantou-se e penetrou primeiro nas sombras da caverna, sendo prontamente seguida pelo cavaleiro.
               As sombras envolveram os dois caminhantes. Morgana prosseguia sem receio, como se fosse dia claro. Mordred manteve a espada em punho e caminhava pé ante pé aprofundando-se no caminho.
- Devíamos ter trazido uma tocha – reclamou.
- Não precisaremos – sentenciou Morgana.
               Aceitando que sua mãe só contaria o objetivo da estranha jornada quando lhe fosse conveniente, Mordred bufou e calou-se. A escuridão, mesclada às roupas negras de Morgana, não permitia que ele a visse realmente, então continuou seguindo-a orientado pelo som de sua respiração e de seus passos sobre o cascalho depositado no chão da gruta. Caminharam pelo que lhe pareceu cerca de uma hora.
               De repente, Morgana parou e sussurrou:
- Mordred, fique calado mais do que nunca. Caso contrário, podemos não ver mais a luz do sol.
               Mordred conhecia bem a teatralidade da mãe, mas naquele momento sentiu arrepios.
- Sete anos atrás tive uma visão – continuou a irmã de Artur Pendragon. – Vi esta gruta e recebi instruções de como alcançá-la. Estamos em um local sagrado. Um local perdido, que foi reencontrado. Uma entrada para os reinos abissais!
               Sendo filho de Morgana Le Fay, aquela considerada por muitos como fada, bruxa ou demônio, ou ainda por todas as denominações juntas, o cavaleiro já havia presenciado vários de seus rituais. Com frequência participava deles. Em certa ocasião até mesmo banhara-se em sangue de animais, ato que lhe garantiria imunidade em batalha, segundo sua mãe. Não havia testado a eficácia do ritual ainda, mas era um homem precavido. E a precaução lhe dizia que banhar-se em sangue animal não era nada comparado à situação em que estava agora. Sua cabeça doía, seus ombros pesavam como se trajasse armadura completa em vez da simples túnica.
- Uma vez por ano, em certa data, escolhia um homem e o trazia até aqui. Sete anos. Sete homens. Um por ano. Apenas um, pois assim o maldito Merlin não descobriria a perfídia. Mas não quaisquer homens. Ah, não! Eu precisava da nata da ganância, da covardia e da deslealdade: assassinos, traidores, ladrões... Aqueles vis o suficiente para abrirem a porta. Verti o sangue dos sete neste local, conforme me foi dito.
               Mordred segurou o cabo da espada com mais força e retesou os músculos. Caso alguma armadilha se apresentasse, não hesitaria em perfurar o corpo da mãe.
               Morgana ajoelhou-se e cavou o solo com suas próprias mãos. Em poucos minutos encontrou o que desejava. Ergueu as mãos unidas sobre a cabeça e nelas Mordred viu um crânio humano que estranhamente emitia um pálido brilho vermelho. Morgana entoou rimas numa língua que o cavaleiro desconhecia, enquanto depositava o crânio sobre o solo. Com as mãos livres, ela puxou segurou a túnica de Mordred, puxando-o levemente para o chão, indicando que ele também deveria se ajoelhar. O cavaleiro obedeceu sem questionar.
- Morgana... – sussurrou o crânio.
               Mordred temeu ter enlouquecido. Por um instante cogitou a possibilidade de estar tendo um pesadelo, ou mesmo morto.
- Morgana Le Fay... Obedecestes ao que te ordenamos. Podes te dirigir a nós – continuou a aparição sobrenatural.
- Mestre. Sabes o que desejamos – disse Morgana.
- Dize com tua própria língua, mulher – esbravejou o crânio.
- A morte de Artur! – respondeu sem hesitar a irmã do rei.
- De que nos interessam tuas vontades?
- Posso atender tua vontade também, mestre!
- De que forma tu, pequena mulher, podes nos atender?
- Artur é protegido por alguém... especial. Alguém que o mantêm constantemente sob seu olhar e que não me permite nenhuma investida!
- Falai sem enigmas ou sofrerás nossa ira.
- Merlin! Artur é protegido por Merlin! Este tu bem conheces, mestre!
               Mordred teve a impressão de que o brilho avermelhado aumentou e crepitou furiosamente no fundo da gruta.
- Maldito seja este nome. E maldita sejas tu, que o pronuncias em nossa presença.
- Sei onde ele se encontra, mestre. E posso mostrar a vós!
- Atentai para tuas ordens, mulher audaciosa. Levai este pó que repousa sob teus pés e fazei com que o maldito pise-o. Assim saberemos onde ele está, pois seus encantos de ocultação serão desfeitos e finalmente, após tantos anos, poderemos alcançá-lo.
- Assim farei, mestre. Assim farei.
- Faças isto e terás como retribuição o desejo mais profundo de teu coração negro. Merlin será meu, e teu odiado irmão-rei ficará exposto para teu veneno.
- Será com ordenas, mestre.
- Ai de ti, mulher. Agora parte.
               Uma corrente de vento espectral varreu o local, fazendo com que o crânio apagasse como uma sinistra vela. Mordred sentia seu coração saltar alucinadamente dentro do peito e uma náusea cortava seu estômago. Aguardou pelo movimento de Morgana antes de levantar-se. A bruxa retirou da manga de seu longo vestido um lenço azul e abriu-o no solo à sua frente. Em seguida, juntou com as mãos um pouco do pó do chão da gruta e colocou sobre o lenço, logo o amarrando como uma pequena trouxa. Ergueu-se com certa dificuldade. A experiência parecia ter exigido tanto de seu corpo físico quanto de sua alma. Sem dizer nenhuma palavra, Morgana e seu filho voltaram-se e caminharam lentamente de volta para a saída da gruta.
               Somente quando puderam ver as estrelas da noite que já banhava o mundo foi que Mordred conseguiu abrir a boca.
- Morgana... O que foi aquilo?
               Morgana apoiou-se numa árvore próxima e inspirou profundamente o ar da noite antes de responder.
- Era Belial, o pai de Merlin.
***
Londres, 2055

               Mordred abriu os olhos assustado. Levou um instante para relembrar onde estava. Praguejou ao perceber que havia caído no sono. Olhou o relógio do uPAN e percebeu que perdera quase trinta minutos. Maldito cansaço. Estava correndo a horas, desde que resgatara o bebê da Unidade Materna de Hampstead. Levantou-se e conferiu o estado de Artur, que repousava dentro da manta isolante sobre a mesa. O bebê parecia tranquilo. Com um clique no botão, Mordred fechou a manta novamente. O aparato acolchoado manteria Artur aquecido e seus filtros de ar deixariam com que respirasse normalmente. O fugitivo atravessou a alça no peito, sobre o ombro esquerdo e abraçou o pacote. Consultou o GPS mais uma vez. Percebeu que teria que atravessar cinco quarteirões até alcançar o Tâmisa, onde seu contato deveria estar esperando. Esperava que não houvesse grandes modificações entre o que era mostrado no mapa defasado e a realidade.
               Empurrou a estante e abriu a porta alguns centímetros. Não viu nem ouviu nenhum sinal de movimento. Saiu cautelosamente do esconderijo, observando alternadamente os dois lados do beco. A chuva havia diminuído bastante, mas provavelmente ainda duraria até o amanhecer. Começou a caminhar com passos apressados pela rua secundária, a via mais curta para chegar ao rio.
               Percebeu que alguns banners com a foto do Imperador estava pichados. Algum moleque corajoso havia escrito palavrões sobre a figura do ditador. A inocência do protesto fez Mordred sorrir. Lembrou-se de quando era um adolescente. Um dos muitos adolescentes criados nos internatos do império. Assim como a maioria deles, quando atingiu a maioridade foi forçosamente alistado no exército imperial e, após anos de treinamento, enviado para lutar nas Guerras Continentais. Naquela época ele nem mesmo se chamava Mordred, e com certeza debocharia de qualquer menção ao sobrenatural, mas isso logo mudou quando, foi mandado dois meses atrás para combater os rebeldes poloneses.
               Corriam boatos de que os russos estavam municiando os rebeldes, numa tentativa de minar o poderio do Novo Império Saxão em suas fronteiras e isso só fazia aumentar o ódio do Imperador. Milhares de soldados eram enviados toda semana para o front. Já haviam passados seis meses de sangrentos combates e as perdas tanto do lado imperial quanto do lado separatista eram grandes. O batalhão de Mordred estava perdido em Gdansk. Os rebeldes haviam conseguido cortar sua retaguarda, isolando-os do restante do exército. Restavam vinte e dois homens famintos rezando por um resgate que não parecia próximo.
               Foram cinco dias de cerco ininterrupto. Os poloneses buscavam minar a resistência dos soldados imperiais, e estes sabiam que os rebeldes não tardariam a desferir o ataque final. Por acaso do destino, o capitão imperial no comando descobrira uma saída subterrânea que poderia levá-los para fora do cerco inimigo. Designou então Mordred para checar a saída.
               Mordred saltou para dentro do alçapão encontrado na velha fábrica que servia de refúgio para os imperialistas. O túnel possuía uma altura de um metro e meio, e largura de igual tamanho. Era escorado por uma aparentemente sólida estrutura de madeira. O soldado acendeu a lanterna e mal começara a rastejar pelo túnel, quando uma forte explosão lhe arremessou para frente. Mordred perdeu os sentidos, e quando voltou a si, estava mergulhado na mais completa escuridão. Tateou pelo caminho em busca da lanterna e a encontrou um metro à sua frente. Ao acendê-la, percebeu que o túnel atrás de si havia desabado, provavelmente devido ao bombardeio polonês. Seus amigos estavam definitivamente perdidos. Só lhe restava seguir adiante, rastejando pelo caminho.
               Perdeu a noção do tempo que permanecera ali. Rastejou em silêncio, chorou, praguejou contra os poloneses, contra o império, contra o mundo. Parou várias vezes, pensando em abandonar-se no caminho. Sentia-se morto e enterrado.
               Num destes momentos, algo estranho aconteceu.
               A luz da lanterna não mostrava fim algum do túnel. Chegou a tentar adivinhar quais motivos fariam alguém construir um túnel tão longo, e com medidas tão limitadas. Desistiu. Não importava o motivo, o que importava era que aquele era o único caminho para uma possível salvação, afinal, ele deveria ter uma saída. Ou não?
               Arrastou-se por mais alguns metros. Uma brisa morna passou por seu rosto e renovou seu ânimo. Ar! Havia então uma saída próxima.
               Subitamente a lanterna apagou-se.
               Deu leves pancadas no aparelho. Apertou o compartimento das baterias. Era impossível que elas tivessem acabado, pois sua carga normalmente duraria meses. Sentiu um medo avassalador percorrer seu corpo.
               Da escuridão total, ouviu uma voz que dizia:
- Mordred... Mordred...
               Sacou a pistola que trazia à cintura e clicou no botão que a deixava pronta para disparo.
- Q-quem está aí? – murmurou sem confiança.
- Mordred... Mordred...
               Instintivamente apontou a pistola para a escuridão à sua frente. Um violento tapa invisível arrancou a arma de sua mão. Gemeu sentido dores com se tivesse socado uma parede de concreto.
- Quem está aí? QUEM? – o pânico apertava-lhe a garganta.
- Tu estás morto, Mordred. Morto, novamente... – disse a voz vinda de lugar algum, agora reconhecidamente masculina.
- Q-Quem?...
- É um destino digno de ti. Morrer como um rato. E não é a primeira vez.
- N-não entendo... Não entendo!
- Entenderás.
               Dedos frios e invisíveis tocaram seu rosto de cima a baixo. Mordred sentiu cada um deles como pinças de gelo queimando sua carne. O frio era insuportável. Gritou em agonia e contorceu-se no estreito corredor. A dor se prolongou por instantes infinitos, e quando cessou, sua mente estava inundada por imagens, sons e cheiros que jamais sentira na vida.
               Viu um imponente castelo. Sabia que o dono dele era um rei forte e leal e, ao mesmo tempo, sabia que odiava aquele homem. Viu também uma mulher amarga, que invariavelmente trajava negro, dizer-lhe coisas terríveis. Viu a si mesmo aceitar e compactuar com propósitos vergonhosos. Lembrou-se de executar o plano de Morgana, espalhando a poeira da gruta pela biblioteca que era sempre frequentada por Merlin. Quando o mago dera o primeiro passo dentro do ambiente, fora irremediavelmente capturado na armadilha e desaparecera numa nuvem de enxofre. Sem a proteção de Merlin, viu o pai mergulhar em uma crise após a outra: primeiro o desaparecimento de seu tutor, depois a descoberta da traição de Guinevere e Lancelot, e, por fim, o combate mortal contra o próprio filho, combate este que custara a vida de ambos. Teve plena consciência do traidor que era. Descobriu que era Mordred, o lendário filho traidor, fruto de uma zombaria do destino, que unira seu pai Artur Pendragon e sua mãe Morgana Le Fay, ambos irmãos, ambos pecadores, todos vítimas de um dramático e insensato plano de vingança.
               Mordred viu a si mesmo em várias outras vidas. Pobre, rico, astuto, ignorante, homem, mulher, velho, criança, mas com um ponto em comum entre todas as passagens.
               Uma morte horrível, seguida do esquecimento.
               O soldado perdido chorou. Chorou por pena e vergonha de si mesmo. Chorou até que não lhe restassem mais lágrimas. Quando tudo o que podia se ouvir era o murmúrio de sua respiração irregular, a voz invisível novamente se fez presente.
- Tens compreensão de tudo agora, homem amaldiçoado.
               Mordred encolheu suas pernas e tentou inutilmente cobrir-se com seus braços. Queria que a voz desaparecesse, mas ela não se calou.
- Participaste de uma trama sórdida, que te custou a eternidade. Pensavas que farias acordos com as trevas e elas te deixariam partir sem dano algum? Tua alma foi maculada, pois buscaste a marca do traidor.
- E-eu... Eu não sabia!
- Claro que não sabias. Eras um tolo presunçoso.
- Eu quero morrer! Quero esquecer!
- Ainda podes. Mas tenho outra coisa em mente.
- Quem está aí? Eu enlouqueci?
- A semente da loucura está plantada em ti desde tua primeira passagem por esta terra. E ela foi regada por tua sombria mãe.
- M-minha mãe? Como assim?... – as lembranças das vidas anteriores se amontoam na mente de Mordred, confundindo-o. Num esforço, ele tenta organizar suas ideias para não ser tragado pelo turbilhão que gira alucinadamente dentro de sua cabeça. – MORGANA! Sim, eu lembro! Oh, Deus... quero esquecer isso tudo...
- Não podes esquecer. Muito pelo contrário, deves lembrar-te. É aí que reside tua única chance.
- Chance de quê?
- De salvar-te. De recuperares a tua alma. De quebrares o ciclo.
- Eu faria QUALQUER COISA!      
- Escuta, Mordred, filho de Artur. As ações perniciosas que engendraste juntamente com tua mãe custaram muito ao mundo. Artur é uma alma iluminada. Iluminada como poucos. Tuas ações privaram o mundo de todo o bem que ele traria à Grã-Bretanha, iniciando uma série de eventos que hoje desembocam na desastrosa existência do império do qual vestes o uniforme. Um império baseado no sangue e na devastação. Uma abominação que consumirá o mundo numa guerra como nunca se viu antes.
- O que eu posso fazer? Não posso fazer nada!
- Tens uma missão. Desta vez, uma missão que busca reparar tua grave falta. Deves encontrar Artur e protegê-lo.
- Encontrar o rei Artur? Como?
- Os deuses são caprichosos. Assim como as ondas vêm e vão, as almas também. Não só tu retornaste, mas Artur também.
- Retornou? E onde ele está?
- Ele está na capital de teu império. Dormindo junto a outros infantes.
- Infante? Quer dizer, uma criança?
- Eu disse que os deuses são caprichosos. Sim, Artur é uma criança. E tu és o adulto que deve protegê-lo até a hora certa. Deves protegê-lo com a tua vida, se necessário. Só assim tua dívida estará paga e poderás descansar.
- Quem é você, afinal? É o meu inconsciente? Estou louco?
- Já fui chamado de louco, mas sempre pelas minhas costas. Os homens geralmente eram sábios em não me provocar.
- Já chega. Diga-me quem é ou acabe logo comigo aqui mesmo...
- Tuas ameaças me fariam rir, caso eu ainda possuísse algum senso de humor. Mas está bem, se isso te fará levantar e prosseguir com tua missão, eu digo-te meu nome... sou Merlin, de Caer-Fyrddin.
- Merlin... é claro...
- Ousa duvidar?
- Se é realmente Merlin, ou seu espectro, por que não vai você mesmo salvar Artur? Não possui poderes fantásticos?
               Um vento gelado rodopia no túnel, levantando poeira e cascalho. Mordred protege os olhos com as mãos, enquanto uma figura fantasmagórica surge atravessada no caminho, com as costas apoiadas na lateral de madeira. O soldado aos poucos vai conseguindo definir a figura, que tremeluz como um holograma na escuridão do local.
               O homem extremamente magro e sem roupas está preso por grossas correntes que envolvem seus braços, pernas e pescoço. Sua aparência é de abandono total.
- Levei centenas de anos para reunir as forças necessárias para despertar a ti e a outros. Mais do que isso não poderei fazer, pois meu pai é muito severo em seus castigos, hahahahaha...
               A risada macabra preencheu o túnel. Mordred levou as mãos aos ouvidos tentando bloqueá-la, mas era inútil.
- Meu tempo se esgota. Segue adiante, Mordred. Redime teu nome e tua alma agora ou aceita teu cruel destino imortal. Avança e encontrarás a saída. É só o que tenho para ti.
               E dito isto, o fantasma desapareceu, deixando o soldado atônito.
               Ainda incrédulo, Mordred rastejou por mais meia hora quando, por fim, encontrou a saída do túnel maldito. A saída era ocultada por um grande galpão, situado a mais de seis quadras do cerco polonês. Correu e afastou-se da cidade, conseguindo reunir-se com o exercito imperial no dia seguinte, febril e alucinando.
               Seis dias depois foi providencialmente enviado de volta à Inglaterra após os médicos do regimento atestarem que não estava em seu juízo perfeito, pois não conseguia dormir e ficava horas falando coisas sem sentido, relembrando coisas vividas certamente por outras pessoas. Suas ordens lhe diziam para aguardar em Londres pelo trâmite dos documentos que dariam sua dispensa do serviço militar.
Mal desembarcara no porto de Londres decidiu seguiu as pistas que Merlin havia implantado em sua mente até alcançar Artur na Unidade Materna de Hampstead.
               Conseguira usar suas credenciais militares para entrar na unidade sob pretexto de procurar um parente perdido. Com alguma agilidade localizara o bebê. A criança não tinha pais conhecidos e havia sido abandonado no posto médico cinco dias antes. Estava destinado ao orfanato estatal, de onde, se sobrevivesse, seria fatalmente encaminhado à carreira militar na adolescência.
               Ainda sob o manto de suas credenciais, conseguira escapar da unidade levando a criança. Por se tratar de um militar, ninguém suspeitou de sua visita num horário incomum, porém quando saiu do local percebeu que o toque de recolher já havia soado. Devia procurar abrigo imediatamente, caso contrário seria detido e interrogado. E neste caso achava pouco provável alguém acreditar em sua história.
               Mal havia percorrido duas quadras de distância da unidade materna quando seu uPAN vibrou com uma ligação. Estranhou de imediato, pois o aparelho era novo e ninguém possuía aquele número. Com as mãos tremendo, atendeu a chamada.
- Quem é? – perguntou nervoso.
- Sou uma amiga. Estou aqui para ajudá-lo.
- Não sei quem está falando. Vou desligar.
- Não faça isso, Mordred.
               Ao ouvir seu “novo” nome, parou estático em plena calçada.
- O que disse?
- Mordred. Eu disse “Mordred”. É o seu nome, não é?
- N-não... Quero dizer... é...
- Eu sei de tudo. Estou aqui para ajudar a resgatar o bebê.
- Como saberei que posso confiar em você?
               A mulher do outro lado da linha disse um nome. E Mordred esqueceu completamente as dúvidas quanto a sua falta de sanidade.
Percorreu vielas e becos apressadamente, constantemente desviando o caminho para escapar dos postos de fiscalização e das patrulhas aéreas que, com seus holofotes, vasculhavam cada canto da cidade. Sequestro já era um crime grave o bastante. Não precisava acrescentar resistência à prisão ou, quem sabe, a morte de algum policial ou militar.
***
               As lembranças pesavam na mente de Mordred. Os últimos dias haviam sido estarrecedores, sua vida havia dado uma reviravolta. Mas, estranhamente, algo em seu interior dizia que agora ele estava desempenhando o papel que lhe cabia. Ele não conseguia afastar a sensação de que finalmente estava realizando uma tarefa que já havia sido adiada por tempo demais. O bebê em seu colo seria levado para longe do império. No mínimo ele o estava salvando de uma vida militarista como a sua, e isso já o fazia sentir bem. Por outro lado, se ele não estivesse louco, estava desempenhando um papel fundamental no futuro do mundo. Estava contribuindo para o surgimento de uma alternativa à opressão fascista do governo do Imperador Max Dittrich. Lembrou-se da lenda de Artur, aquela que afirmava que ele voltaria quando seu povo mais precisasse. Rezou para que as lendas fossem verdadeiras.
               Já podia ver o Tâmisa duas quadras abaixo. Segundo o uPAN, seu contato devia estar logo ali, aguardando com um barco.
               Seu sorriso de satisfação foi arrancado de seu rosto quando um jato planador pousou verticalmente na rua à sua frente. O holofote da aeronave cobriu-o com luz da cabeça aos pés.
- Patrulha urbana: Erga os braços e permaneça onde está – ordenou a voz metálica vindo dos autofalantes externos do veículo.
               Mordred levantou os braços devagar. Sua mente fervilhava.
               Dois homens saltaram do planador. Um terceiro permaneceu no assento do piloto. Os dois militares caminharam até Mordred e o olharam inquisitivamente. Um deles carregava um fuzil nas mãos.
- Quero ver seus documentos, agora – exigiu o mais velho dos militares, um sargento de meia idade.
- Estão no meu bolso. Aqui em cima – respondeu Mordred.
- O que está fazendo nesta área proibida? – perguntou o sargento, revistando os bolsos de Mordred. Na revista encontrou o uPAN e a holoidentidade do fugitivo.
- Esqueci a hora e quando percebi já era hora do toque de recolher. Estava cortando caminho pra casa. Não quero problemas.
- Ninguém quer. Mas às vezes são inevitáveis – retrucou o militar inserindo a holoidentidade do fugitivo no leitor portátil que começou imediatamente a listar uma série de informações sobre Mordred – Hm, então é um soldado?
- Sim, senhor.
- E chegou há pouco... Polônia, hein? Deve ter sido dureza... Baixa médica...
- Foi bem difícil, senhor.
- E o que tem na bolsa?
- Como?
- O que tem na bolsa?
- Apenas roupas, senhor.
- Numa térmica?
- É para protegê-las da chuva.
- Sei. Abra-a.
               Mordred baixou os braços sob o olhar vigilante dos dois militares. Descansou a bolsa térmica sobre o asfalto. Amaldiçoou-se por ser tão tolo a ponto de não portar nenhuma arma. Respirou fundo e hesitou.
- Abra a bolsa, soldado – insistiu o sargento.
               O ronco do rasante de um planador atraiu a atenção de todos. O piloto do planador militar imediatamente dirigiu o foco do holofote para o intruso e todos puderam ver que não era uma aeronave do governo. Aproveitando a distração, Mordred saltou sobre o soldado que portava o rifle. Ambos rolaram pelo asfalto.
               O sargento procurou pela pistola em sua cintura. No momento em que a encontrou, foi jogado ao chão por outro rasante da nave desconhecida. Mordred era mais forte que seu adversário. Conseguiu dominá-lo e, sem retirar o rifle de suas mãos, virou- o para o sargento e disparou uma saraivada de tiros que atingiu o homem em várias partes, matando-o instantaneamente. O piloto do planador acionou imediatamente o comunicador e convocou reforços.
               No chão, o soldado tentava recuperar o rifle. Mordred deu-lhe uma coronhada tão violenta com o cabo da arma que sentiu o maxilar do homem deslocar-se. O soldado desmaiou.
               Possuído por um renovado espírito de luta, Mordred correu para a aeronave militar antes que o piloto pudesse decidir entre partir em segurança ou tentar deter o adversário. Saltou sobre a aeronave, enfiando o cano do rifle para dentro da cabine, impossibilitando que o piloto pudesse fechar a porta. O cavaleiro reencarnado acionou repetidas vezes o gatilho da arma, fuzilando o piloto.
               O planador civil pousou imediatamente, logo adiante da aeronave militar. Mordred sacou o rifle e esperou por algum sinal de hostilidade, mas foi surpreendido pela saída de uma bonita mulher morena, de cabelos encaracolados e corpo curvilíneo, que acenou para ele com gesto de urgência.
- Venha! Não vai demorar para que os reforços cheguem aqui!
- Quem é você?
- Sou seu contato! Guinevere!
               Mordred correu e saltou para o asfalto. Com passadas largas chegou até a bolsa e apanhou Artur cuidadosamente. O menino chorava assustado com os tiros, mas estava bem. Levantou-se e correu para o planador de Guinevere.
               Olharam-se com estranha familiaridade. Embora pudessem dizer que nunca tinham visto um ao outro, compartilhavam um elo que extrapolava a normalidade. Imediatamente relembraram sua convivência na época de Camelot e todo o rancor que existia entre eles, mas também lembraram-se das palavras de Merlin. Lembraram-se de que estavam em uma jornada de redenção.
- Entre. Vamos! – ordenou Guinevere.
               Mordred entrou e logo tomou o assento mais próximo. Aninhou Artur em seu colo e fixou o cinto de segurança. Guinevere tomou o lugar do piloto e partiu aceleradamente. Com destreza manobrou por entre os prédios baixos, afastando-se do local do conflito. Fez vários rasantes buscando colocar obstáculos entre a sua aeronave e as patrulhas que cortavam o céu. Com extrema habilidade, conseguiu afastar-se e deixar as luzes de Londres cada vez mais para trás. Por fim puderam respirar mais aliviados.
- Para onde agora? Merlin só me disse onde Artur estaria – perguntou Mordred.
- Ele me deu instruções para buscá-lo e leva-los para a França – respondeu Guinevere.
- O que tem na França?
- Mais alguém em busca de redenção. Alguém que pode nos ajudar.
- Sabe quem é?
- Claro. Você o conhecia como Lancelot du Lac...
               Seria uma reunião bem estranha, admitiu Mordred. Ele respirou fundo, buscando relaxar depois das últimas horas de tensão. Olhou para o bebê em seu colo e o acariciou ternamente.
- Não vou falhar contigo desta vez, pai.

FIM?