- Na verdade, eu
já sei. Mas quero ouvir com suas palavras. – responde o visitante recostando-se
em sua própria cadeira.
- Humpf... se é
assim...
“Eu me lembro do verde. Verde
abundante, em todos os tons possíveis de se imaginar. Nos cercando, nos
cobrindo, nos sufocando num calor insuportável. Assim era a mata quando nela
adentramos. Quatro semanas de caminhada depois, estávamos exaustos. Nossas
camisas empapadas de suor, nossas roupas sujas... mas nada isso importava. O
que importava era seguir o comandante.
Joaquim de Araújo era um homem forte.
De cinqüenta e poucos anos, ainda liderava expedições como a nossa, com o
objetivo de abrir rotas pela mata e capturar os nativos, que estavam sendo
vendidos a bom preço em São Paulo. A coroa agradecia o nosso esforço... e os
nossos bolsos nunca ficavam vazios. Somente o ouro poderia nos impulsionar
neste inferno verde.
Quando encontrávamos os selvagens, o
verde era substituído por outra cor: o vermelho. O vermelho do sangue desses
animais, que insistiam em lutar para permanecer em suas aldeias imundas,
vivendo nus, sem lei nem ordem, sem nem ao menos o temor da cruz.
E como lutavam os animais! Chegaram a
matar dois dos nossos com suas lanças e feriram mais dois com suas flechas
certeiras. Mas neste dia, fizemos a vontade do Senhor e conseguimos apresar
trinta deles para levá-los à civilização, onde teriam a oportunidade de
converter-se em cristãos e trabalhar a serviço de algum nobre, como era seu
destino. Infelizmente, duas dúzias deles morreram na luta, fazendo nosso
comandante lamentar o prejuízo. E as mulheres fugiram mata adentro. Nem esse
divertimento pudemos ter naquele dia.
Meu nome é Antonio Silveira. Na época
eu tinha apenas dezesseis anos e era a primeira vez que participava de uma das
expedições de apresamento dos selvagens. Mesmo com a minha inexperiência tive
orgulho em degolar um dos animais quando o encontrei escondido atrás de uma
árvore. Era um velho. Não teria valor algum no mercado.
Após reunirmos a renda do dia e nos
certificarmos de que estavam bem amarrados, nosso comandante decidiu retornar à
Missão de Santa Maria, por onde passamos dois dias atrás. Lá seria um bom lugar
para manter o grupo de escravos, até nossa volta à capital, uma vez que o Padre
Lázaro era associado de Joaquim de Araújo.”
- Muito cristão
de sua parte – ironiza o visitante.
- Naquela época,
tínhamos outras idéias. Afinal, era 1590. Posso continuar?
- Deve.
- Pois bem...
“Nem tudo ocorreu como planejava nosso
capitão. Caminhamos até o anoitecer, quando resolvemos pernoitar numa clareira
próxima a um riacho. Reunimos os selvagens num local e os amarramos uns aos
outros, e também às arvores mais próximas. Estabelecemos a rotina de vigia e
aqueles dispensados do primeiro turno se recolheram para dormir.
Eu estava de prontidão quando
aconteceu (para minha desgraça). Primeiro, um clarão e o céu se encheu de uma
luz azulada. A noite tornou-se praticamente dia, empalidecendo a nossa
fogueira. O estrondo que se seguiu foi aterrorizante. Muitos de nós caíram de
joelhos pedindo perdão por seus pecados, acreditando tratar-se do fim do mundo.
Outros embrenharam-se na mata gritando como loucos. Os selvagens,
impossibilitados de fugir, gritaram assustados e diziam coisas que ninguém
compreendia.
De onde estava, pude perceber que
havia fogo e fumaça num ponto não muito distante na mata. Naquela época, como
já disse, eu era um jovem ignorante e sedento por aventuras e riquezas. Não
hesitei. Corri para o local onde o fogo se pronunciava.
Cheguei no local em quinze minutos.
Fui o primeiro a chegar. O cenário era de desastre. Árvores caídas e queimadas
como se uma mão invisível houvesse passado furiosamente por ali. Eu acreditava
que Deus finalmente havia decidido queimar aquele pedaço do inferno na terra.
Aproximei-me cautelosamente. No final
do rastro de destruição havia uma cratera com cerca de vinte metros de
diâmetro. Um buraco negro, de terra queimada. O calor era grande, mas
suportável. Foi quando finalmente vi.
Dentro da cratera havia uma redoma.
Uma coisa que lembrava uma colher. Uma redoma com dois metros de comprimento e
igual altura e uma cauda de três metros, que ia afinando a partir da redoma.
Era vermelha, mas conforme o calor diminuía, sua cor se tornava azul.
Com o cano de minha espingarda,
cutuquei a redoma. Ela se desfez como água, abrindo sua parte superior.
E dentro havia um demônio.”
- Um demônio?
Que pitoresco... – zomba o visitante.
- Naquela época,
era a única coisa que eu podia pensar. Hoje, eu sei que o demônio tem outras
formas. Como a sua, senhor Melkart. – diz o homem barbudo com raiva.
- Demônio? Sim,
sim... já fui chamado assim. Mas continue, Silveira...
- Como eu
dizia...
“O demônio era pequeno. Devia ter uns
cinqüenta centímetros de altura. Sua cabeça era desproporcional ao corpo. Tinha
dois orifícios na parte superior da cabeça, que deveriam ser seus olhos, e dois
orifícios laterais. Não vi nariz algum e o que parecia uma boca era
protuberante e se destacava na cabeça redonda. Seu corpo era esguio, braços
longos e tentaculares, duas pernas curtas... Algo horrível. Ao me aproximar
para observar melhor, a coisa abriu os olhos graúdos e fixou-os em mim. Meu primeiro
pensamento foi atirar naquela coisa. E foi o que fiz. Engatilhei a espingarda e
acertei em cheio um tiro na cabeça daquele demônio, espalhando seus miolos por
toda parte.
Com o coração palpitando eu queria
sair dali o mais rápido possível, mas foi quando vi o tubo com as luzes de
várias cores, bem ao lado do monstro. Eram cores maravilhosas e me atraíram
como uma borboleta. Hipnotizado, toquei no tubo e da mesma forma que a redoma,
ele se desfez.
Olhei maravilhado aquelas luzes saírem
flutuando do tubo. Elas giraram ao meu redor e antes que eu me desse conta,
elas investiram contra mim e entraram em meu corpo, sem abrir um buraco sequer.
Apenas transpassaram minha pele e eu pude senti-las percorrendo meu corpo.
Imagens loucas, de lugares estranhos, mundos perdidos, sóis e luas distantes
invadiram minha mente. Na época, achei que estava vendo uma paisagem do
inferno.”
- Você parece
ter fixação no inferno, Silveira. Ou estou enganado? – o visitante sorri.
- Céu ou
inferno... tenha o nome que tiver, não acredito que exista. Não mais. –
Silveira se remexe na cadeira. Em seus olhos, um ódio profundo parece flutuar.
- Ah, meu pobre
amigo... Será que 432 anos de vida não lhe ensinaram nada?
- Ensinaram que
eu não consigo morrer. Por mais que tente, e acredite, eu já tentei tudo o que
se possa imaginar, eu continuo aqui. Aquela experiência me tornou imortal... E
me amaldiçoou.
- Ah, sim. Sua
condição é interessante... Um imortal que não pode tocar em ninguém.
- Maldito
demônio zombeteiro...
- Não, não,
Silveira. Posso ser um demônio (quem sabe?), mas estou aqui para ajudá-lo.
- Me ajudar?
Como?
- Eu venho lhe
observando desde muito tempo. Sei que seu encontro com forças de outro mundo
lhe deu a imortalidade, mas também lhe deu o toque da morte.
Silveira olha para as próprias mãos
enfaixadas e enluvadas.
- Você não pode
tocar em nenhum ser vivo sem que o mate. E isso já lhe custou muito, não? Sua
família, seus amigos... – os olhos do visitante parecem duas brasas
incandescentes.
- Sim, sim,
SIM!!! Maldito. Sabe de tudo isso e veio me atormentar? Faz vinte anos que me
recolhi nesta cabana, afastado de tudo e de todos para tentar existir em paz...
Me deixe! Suma daqui!
- Dificilmente
você gostaria que eu sumisse. Eu tenho poder para lhe dar seu maior desejo.
- Meu maior
desejo é a morte!
- Pois posso
concedê-la a você.
- Mentiroso. O
demônio sempre mente...
- Esqueça suas
aulas de catecismo. Já fazem pelo menos três séculos que você não se considera
cristão, ou de qualquer outra religião...
- Diga o que
quer ou vá embora!
- Ah, curioso
agora? Pois bem. Eu posso lhe conceder a morte. Mas você deve me convencer que
realmente merece meu presente.
- Como? Eu já
tive que matar nesta vida... às vezes por defesa, outras por pura loucura...
Tenho muitos pecados!
- Não foi o
suficiente. Me agrade e a morte lhe receberá. Eu garanto.
- Você é a
morte?
- Não. Mas posso
lhe levar até ela.
- Então faça
AGORA! EU IMPLORO!
- Faça por
merecer. Além disso, outros buscam pela minha atenção e meus presentes...
talvez você não seja o melhor deles. Talvez outro seja mais digno...
- O quê devo
fazer?
- Use sua
imaginação. Pense em algo...
Silveira sente sua cabeça ferver.
Aquele estranho homem, surgido do nada, batera em sua porta esta manhã e
simplesmente sabia tudo a seu respeito. Seus instintos lhe diziam se tratar de
um demônio, mas mesmo para quem viveu quatro séculos e viu muita coisa, ele não
tinha certeza disso.
Quatro séculos... o suficiente para
ver todas pessoas amadas sucumbirem. O suficiente para conhecer o melhor e o
pior dos homens. O suficiente para se cansar da maldição de não poder tocar em
nenhum ser vivo.
Súbito, a decisão está tomada.
Silveira levanta-se e diz:
- Me espere
aqui. Quando eu voltar, a morte me aceitará.
Melkart, o visitante, assente com a
cabeça. Seu sorriso impenetrável continua a incomodar Silveira.
Silveira apanha um casaco e sai pela
porta da pequena cabana.
Quatro horas se passam. Melkart
observa impassível pela janela da cabana de Silveira. Em sua face, nenhum
sentimento é demonstrado, e suas intenções são insondáveis.
Finalmente a porta da cabana se abre e
um amaldiçoado Silveira entra e se joga sentado no chão. Seus olhos refletem o
mais puro horror.
- E-está
feito... – murmura Silveira.
- Sim, eu senti
o impacto de seus atos – responde Melkart.
- Sentiu? Então
sabe o que eu fiz? – Silveira não consegue tirar os olhos do chão. É impossível
encarar Melkart.
- Sim. Achei que
foi um grande esforço de sua parte.
- GRANDE
ESFORÇO??? – Silveira levanta-se e avança agarrando Melkart pelo colarinho - É
TUDO O QUE TEM PARA ME DIZER?
- Ora, - Melkart
encara Silveira nos olhos – deseja que eu lhe dê parabéns por ter chacinado
toda a população da vila mais próxima? Parabéns por ter matado homens, mulheres
e crianças, sem discriminação, sem hesitação? Você matou quase duzentas
pessoas, apenas lhes tocando... acha que é um grande feito?
- Agora tenho
certeza... Você É o demônio! Meu Deus... vejo o rosto de cada um daqueles que
toquei. E-eu matei... crianças inocentes! Bebês até!
- Cada um tem
seu demônio, Silveira. Talvez eu seja o seu. Mas sou um homem de palavra.
- Vai me dar a
morte?
- Sim, claro.
- ENTÃO FAÇA
LOGO! EU QUERO MORRER AGORA!
- Receba esta
marca – dizendo isto, Melkart toca no braço direito de Silveira. O imortal
sente a dor de uma queimadura e quando o visitante retira a mão, Silveira
percebe uma tatuagem em forma de serpente no seu braço.
- Minha pele vai
regenar. Essa marca vai sumir. – diz o imortal.
- Não. Ela está
gravada na sua alma. Você agora terá o prêmio que tanto pediu. Mas deve me
encontrar num lugar apropriado.
- Você prometeu
me matar! Eu exijo...
- Claro. Mas
isso não pode ser feito em qualquer lugar. Eu lhe mandarei instruções sobre
como chegar em um local de poder, onde poderei libertar você do peso da
imortalidade. Acalme-se, homem imortal... você terá seu descanso.
- SIM! SIM! É o
que eu quero!
- Aguarde minhas
instruções. Em breve nos reencontraremos.
Um vento frio escancara a porta da
cabana e Silveira volta-se para fechá-la. Ao olhar de volta, o misterioso
visitante Melkart desaparecera.
- Era o demônio.
Eu tenho certeza. Pois que seja... Pois que eu vá para o inferno. Chega desta
existência! Chega deste mundo! Eu irei ao seu encontro Melkart, e por bem ou
por mal, você me libertará desta existência.
FIM?