A Balada do Traidor

Londres, 2055.

A chuva caía inclemente sobre a cidade. Pesadas nuvens rodopiavam sobre a metrópole, despejando sua carga líquida, alheias aos dramas e necessidades que aconteciam nas ruas abaixo. A lua, totalmente encoberta pelo céu tempestuoso, nada podia fazer para diminuir a escuridão que assolava o homem que corria alucinadamente por uma das vielas de Londres.
O homem corria o mais rápido que podia. Gostaria de correr bem mais rapidamente, mas sabia que isso era impossível, pois sua preciosa carga poderia ser perdida. O andarilho atravessou uma viela estreita situada entre dois prédios e surgiu numa rua secundária. Ele estancou por um momento. Não havia trânsito, como ele já esperava. Aquele setor da cidade era praticamente despovoado, pois estava marcado como uma das áreas destinadas à “realocação urbana planejada”, um nome pomposo que o governo criara para despejo coletivo e expulsão. Mesmo a área possuindo um grupo ou outro de miseráveis e marginais, nenhum deles ousaria desafiar o toque de recolher. Apenas os imensos banners de propaganda que exibiam a imagem do Imperador Max Dittrich, líder inquestionável de Nova Saxônia, encaravam o andarilho. O silêncio só era cortado pelo ruído da chuva e pelo som distante do trânsito além da linha de exclusão que cercava o bairro.
A água escorreu pelos longos cabelos lisos do homem e atrapalhou sua visão. Com a costa da mão direita ele removeu os cabelos do rosto. Rapidamente apanhou do bolso superior do casaco o pequeno uPAN – Navegador e Agente Pessoal, com localizador GPS plugado à rede pirata Undernet –, buscando orientar-se novamente. Infelizmente o aparelho pouco lhe ajudou, pois o mapa da área estava completamente desatualizado, exibindo ruas e marcações datadas de 2045, bem anteriores às alterações feitas pelo atual governo. Praguejando, ele observou a quadra e em um instante percebeu uma saída pela esquerda, um beco completamente escuro. Ele mal pôde divisar os contornos das caçambas de lixo e não lhe agradou a ideia de correr pelo caminho desconhecido, porém, a alternativa seria prosseguir pela rua, a céu aberto, o que com certeza facilitaria que fosse encontrado. Decidiu mergulhar na escuridão, buscando afastar-se das luzes da precária iluminação pública. Com passos largos, mas cautelosos, ele avançou pelo beco, procurando não colidir com nenhuma das caçambas.
Subitamente, uma coluna de luz varreu a entrada do beco às suas costas. O som de jatos planadores deixou claro que era questão de instantes até que fosse localizado. Ele apertou a carga contra o peito e contornou uma caçamba, tateando a parede em busca de algum refúgio.
               Ele não conseguiu conter um profundo suspiro de alívio quando seus dedos encontraram o contorno de uma porta. Agindo instintivamente, ele recuou e em seguida deu um forte chute na porta. A entrada cedeu e, felizmente, nenhum sinal de alerta soou. O homem entrou de imediato, e tornou a fechar a porta atrás de si, apoiando-a com seu próprio corpo. Pela luminosidade que atravessava as frestas da porta ele pôde perceber que o facho de luz vindo do céu varria completamente o beco, eliminando qualquer sombra protetora que pudesse haver ali.
               Felizmente nenhuma patrulha terrestre resolveu participar da perseguição até o momento. Parecia que eles esperavam localizá-lo pelos ares para então desembarcar os caçadores. Se fosse assim, estaria seguro por algum tempo.
               Agarrou uma estante vazia e puxou-a, sem esforço, até escorar melhor a porta arrombada. Em seguida, olhou em volta e mapeou a sala onde estava. O local parecia ter sido usado como depósito de alguma antiga empresa, pois possuía algumas caixas padronizadas amontoadas junto às paredes, além de três estantes metálicas vazias e uma mesa comprida. Papéis esquecidos estavam jogados por todos os lados, completando o cenário de abandono. Na parede oposta, o invasor percebeu uma porta de vai-e-vem fechada, coberta por teias de aranha.
               Um pouco mais relaxado, o homem caminhou até a mesa e retirou a carga que abrigava sob o casaco. Seu braço esquerdo formigava devido às quase duas horas em que carregava sem descanso o pacote. Tirou a alça dos ombros e depositou o embrulho sobre a mesa. O pacote era uma manta térmica isolante e media cerca de cinquenta centímetros de comprimento. O homem apertou o botão do fecho automático e a manta se abriu até a metade, como uma flor desabrochando.
               Revelou um saudável bebê com brilhantes e curiosos olhos azuis. Não devia ter mais do que poucas semanas de nascido.
               Sob o casaco, o uPAN vibrou chamando sua atenção do fugitivo. Ele verificou o número no display e atendeu prontamente.
- Onde você está? – perguntou a voz feminina do outro lado da ligação.
- Atrasado. Mas devo alcançar o ponto de encontro em cerca de uma hora.
- Me dê sua localização. Vou buscá-lo.
- É muito arriscado... Aguarde-me.
- Mordred, como ele está?
- Perfeitamente bem. Não se preocupe.
- Como se isso fosse possível...
- Mais alguma coisa?
- Aguardarei apenas mais uma hora. Depois disso e...
               Mordred desligou antes que a frase fosse terminada. Sabia o que estava em jogo e não gostava de recomendações desnecessárias. Virou-se para o bebê, que o encarava com um olhar enigmático.
 - Sempre me dando trabalho, hein, Artur?...

***
Cornualha, num tempo já esquecido...

               O casal de andarilhos avançava pela floresta com determinação. A mulher que ia à frente indicando o caminho não hesitava em momento algum. Parecia conhecer de cor cada pedra daquela trilha. Era morena e aparentava cerca de trinta e cinco anos, possuía estatura mediana e corpo esguio, coroada por compridos cabelos lisos, tão negros como o vestido que usava, o que a tornavam uma mancha sombria em movimento, destacada contra a floresta verdejante. Seu belo rosto era marcado por olhos castanhos ágeis e inquietos, que percorriam cada centímetro da paisagem.
               O homem que a seguia era igualmente moreno, porém mais alto que a mulher. Seus cabelos eram negros, cortados à moda dos cavaleiros, e vestia uma túnica marrom. Seus olhos azuis pareciam duas pedras de gelo e deixavam transparecer seu desconforto em estar ali. Vez ou outra tocava o cabo da espada que trazia na cintura, como se desejasse certificar-se de que ela continuava ali.
- Já andamos bastante, não acha? – reclamou o homem.
- Reclamas demais, meu filho. Aliás, eu já lhe disse isso, não? – respondeu a mulher.
- Várias vezes. Mas não pode me culpar pela minha impaciência. Já faz algum tempo que me prometeu um reino, e não um passeio pela mata...
- Mordred, meu pequeno...
- Morgana, minha mãe...
- ...tens passado muito tempo na companhia de teu pai. Estás pensando apenas em quantas espadas, armaduras ou cavalos podes juntar. Coisas tão materiais e corruptíveis...
- Espadas e cavalos são necessários em qualquer guerra. E eu, lamento dizer, não possuo nenhum dos dois em quantidade suficiente para depor meu pai Artur.
- Aço e carne são as armas do homem comum e o tempo consome a ambos igualmente. Mas o verdadeiro poder, ah, este reside dentro da alma do homem que ousa buscá-lo. Escuta-me, Mordred.
- Escutá-la é o que tenho feito a vida inteira.
- Não parece, pois não aprendestes nada. Escuta, por que achas que os homens seguem teu pai?
- Por que ele é o rei, oras. Que pergunta simplória, Morgana.
- Ignóbil. Cada vez me decepcionas mais. Artur é rei, de fato, mas a nobreza que faz com que os homens o sirvam reside em sua alma. Ainda que ele não possuísse um mero sítio para criar porcos, os homens o seguiriam.
- Bobagem!
- A alma de Artur possui uma distinção, filho surdo. Ele foi marcado pelos deuses desde a concepção. Ele é um predestinado.
- Predestinado a reinar, enquanto eu, seu filho legítimo, sou destinado a vagar como um bastardo...
- Os deuses brincam com os homens, Mordred. Esta é outra lição que não deves esquecer. Porém, existem aqueles que se recusam a participar do jogo que lhes é imposto e descobrem maneiras de extrapolar o papel que os deuses determinam.
- Pessoas como tu, Morgana?
- Sim, exatamente. Eu sei o que os deuses esperam de mim, e me recuso a desempenhar tão ridículo papel. E tu também, Mordred. Tu, sangue do meu sangue.
- Não me parece que tenhas feito um bom trabalho para escapar de teu destino, Morgana. Eu mesmo, que sigo teus planos, tenho que me contentar em parecer um servo fiel do rei, apenas mais um entre tantos que bajulam Artur. Afinal, aqui estamos, perambulando por estas paragens ermas enquanto o rei e seus devotados amigos desfrutam dos prazeres do poder.
- Cala-te. Chegamos.
               Por alguns instantes o filho de Artur teve a impressão de que a gruta surgira do nada. Uma gruta quase completamente coberta pela mata, capaz de passar despercebida por pessoas menos atentas. Mordred encarou a entrada sombria e olhou incrédulo para Morgana.
- “Chegamos” onde? A este buraco no meio do nada?
- Basta de insolências, tolo. Entremos.
               Morgana afastou-se dando passagem para o filho. Mordred sacou sua espada e, com quatro ou cinco gestos rápidos, cortou parte do mato e das ervas daninhas que cobriam a entrada da gruta. Morgana adiantou-se e penetrou primeiro nas sombras da caverna, sendo prontamente seguida pelo cavaleiro.
               As sombras envolveram os dois caminhantes. Morgana prosseguia sem receio, como se fosse dia claro. Mordred manteve a espada em punho e caminhava pé ante pé aprofundando-se no caminho.
- Devíamos ter trazido uma tocha – reclamou.
- Não precisaremos – sentenciou Morgana.
               Aceitando que sua mãe só contaria o objetivo da estranha jornada quando lhe fosse conveniente, Mordred bufou e calou-se. A escuridão, mesclada às roupas negras de Morgana, não permitia que ele a visse realmente, então continuou seguindo-a orientado pelo som de sua respiração e de seus passos sobre o cascalho depositado no chão da gruta. Caminharam pelo que lhe pareceu cerca de uma hora.
               De repente, Morgana parou e sussurrou:
- Mordred, fique calado mais do que nunca. Caso contrário, podemos não ver mais a luz do sol.
               Mordred conhecia bem a teatralidade da mãe, mas naquele momento sentiu arrepios.
- Sete anos atrás tive uma visão – continuou a irmã de Artur Pendragon. – Vi esta gruta e recebi instruções de como alcançá-la. Estamos em um local sagrado. Um local perdido, que foi reencontrado. Uma entrada para os reinos abissais!
               Sendo filho de Morgana Le Fay, aquela considerada por muitos como fada, bruxa ou demônio, ou ainda por todas as denominações juntas, o cavaleiro já havia presenciado vários de seus rituais. Com frequência participava deles. Em certa ocasião até mesmo banhara-se em sangue de animais, ato que lhe garantiria imunidade em batalha, segundo sua mãe. Não havia testado a eficácia do ritual ainda, mas era um homem precavido. E a precaução lhe dizia que banhar-se em sangue animal não era nada comparado à situação em que estava agora. Sua cabeça doía, seus ombros pesavam como se trajasse armadura completa em vez da simples túnica.
- Uma vez por ano, em certa data, escolhia um homem e o trazia até aqui. Sete anos. Sete homens. Um por ano. Apenas um, pois assim o maldito Merlin não descobriria a perfídia. Mas não quaisquer homens. Ah, não! Eu precisava da nata da ganância, da covardia e da deslealdade: assassinos, traidores, ladrões... Aqueles vis o suficiente para abrirem a porta. Verti o sangue dos sete neste local, conforme me foi dito.
               Mordred segurou o cabo da espada com mais força e retesou os músculos. Caso alguma armadilha se apresentasse, não hesitaria em perfurar o corpo da mãe.
               Morgana ajoelhou-se e cavou o solo com suas próprias mãos. Em poucos minutos encontrou o que desejava. Ergueu as mãos unidas sobre a cabeça e nelas Mordred viu um crânio humano que estranhamente emitia um pálido brilho vermelho. Morgana entoou rimas numa língua que o cavaleiro desconhecia, enquanto depositava o crânio sobre o solo. Com as mãos livres, ela puxou segurou a túnica de Mordred, puxando-o levemente para o chão, indicando que ele também deveria se ajoelhar. O cavaleiro obedeceu sem questionar.
- Morgana... – sussurrou o crânio.
               Mordred temeu ter enlouquecido. Por um instante cogitou a possibilidade de estar tendo um pesadelo, ou mesmo morto.
- Morgana Le Fay... Obedecestes ao que te ordenamos. Podes te dirigir a nós – continuou a aparição sobrenatural.
- Mestre. Sabes o que desejamos – disse Morgana.
- Dize com tua própria língua, mulher – esbravejou o crânio.
- A morte de Artur! – respondeu sem hesitar a irmã do rei.
- De que nos interessam tuas vontades?
- Posso atender tua vontade também, mestre!
- De que forma tu, pequena mulher, podes nos atender?
- Artur é protegido por alguém... especial. Alguém que o mantêm constantemente sob seu olhar e que não me permite nenhuma investida!
- Falai sem enigmas ou sofrerás nossa ira.
- Merlin! Artur é protegido por Merlin! Este tu bem conheces, mestre!
               Mordred teve a impressão de que o brilho avermelhado aumentou e crepitou furiosamente no fundo da gruta.
- Maldito seja este nome. E maldita sejas tu, que o pronuncias em nossa presença.
- Sei onde ele se encontra, mestre. E posso mostrar a vós!
- Atentai para tuas ordens, mulher audaciosa. Levai este pó que repousa sob teus pés e fazei com que o maldito pise-o. Assim saberemos onde ele está, pois seus encantos de ocultação serão desfeitos e finalmente, após tantos anos, poderemos alcançá-lo.
- Assim farei, mestre. Assim farei.
- Faças isto e terás como retribuição o desejo mais profundo de teu coração negro. Merlin será meu, e teu odiado irmão-rei ficará exposto para teu veneno.
- Será com ordenas, mestre.
- Ai de ti, mulher. Agora parte.
               Uma corrente de vento espectral varreu o local, fazendo com que o crânio apagasse como uma sinistra vela. Mordred sentia seu coração saltar alucinadamente dentro do peito e uma náusea cortava seu estômago. Aguardou pelo movimento de Morgana antes de levantar-se. A bruxa retirou da manga de seu longo vestido um lenço azul e abriu-o no solo à sua frente. Em seguida, juntou com as mãos um pouco do pó do chão da gruta e colocou sobre o lenço, logo o amarrando como uma pequena trouxa. Ergueu-se com certa dificuldade. A experiência parecia ter exigido tanto de seu corpo físico quanto de sua alma. Sem dizer nenhuma palavra, Morgana e seu filho voltaram-se e caminharam lentamente de volta para a saída da gruta.
               Somente quando puderam ver as estrelas da noite que já banhava o mundo foi que Mordred conseguiu abrir a boca.
- Morgana... O que foi aquilo?
               Morgana apoiou-se numa árvore próxima e inspirou profundamente o ar da noite antes de responder.
- Era Belial, o pai de Merlin.
***
Londres, 2055

               Mordred abriu os olhos assustado. Levou um instante para relembrar onde estava. Praguejou ao perceber que havia caído no sono. Olhou o relógio do uPAN e percebeu que perdera quase trinta minutos. Maldito cansaço. Estava correndo a horas, desde que resgatara o bebê da Unidade Materna de Hampstead. Levantou-se e conferiu o estado de Artur, que repousava dentro da manta isolante sobre a mesa. O bebê parecia tranquilo. Com um clique no botão, Mordred fechou a manta novamente. O aparato acolchoado manteria Artur aquecido e seus filtros de ar deixariam com que respirasse normalmente. O fugitivo atravessou a alça no peito, sobre o ombro esquerdo e abraçou o pacote. Consultou o GPS mais uma vez. Percebeu que teria que atravessar cinco quarteirões até alcançar o Tâmisa, onde seu contato deveria estar esperando. Esperava que não houvesse grandes modificações entre o que era mostrado no mapa defasado e a realidade.
               Empurrou a estante e abriu a porta alguns centímetros. Não viu nem ouviu nenhum sinal de movimento. Saiu cautelosamente do esconderijo, observando alternadamente os dois lados do beco. A chuva havia diminuído bastante, mas provavelmente ainda duraria até o amanhecer. Começou a caminhar com passos apressados pela rua secundária, a via mais curta para chegar ao rio.
               Percebeu que alguns banners com a foto do Imperador estava pichados. Algum moleque corajoso havia escrito palavrões sobre a figura do ditador. A inocência do protesto fez Mordred sorrir. Lembrou-se de quando era um adolescente. Um dos muitos adolescentes criados nos internatos do império. Assim como a maioria deles, quando atingiu a maioridade foi forçosamente alistado no exército imperial e, após anos de treinamento, enviado para lutar nas Guerras Continentais. Naquela época ele nem mesmo se chamava Mordred, e com certeza debocharia de qualquer menção ao sobrenatural, mas isso logo mudou quando, foi mandado dois meses atrás para combater os rebeldes poloneses.
               Corriam boatos de que os russos estavam municiando os rebeldes, numa tentativa de minar o poderio do Novo Império Saxão em suas fronteiras e isso só fazia aumentar o ódio do Imperador. Milhares de soldados eram enviados toda semana para o front. Já haviam passados seis meses de sangrentos combates e as perdas tanto do lado imperial quanto do lado separatista eram grandes. O batalhão de Mordred estava perdido em Gdansk. Os rebeldes haviam conseguido cortar sua retaguarda, isolando-os do restante do exército. Restavam vinte e dois homens famintos rezando por um resgate que não parecia próximo.
               Foram cinco dias de cerco ininterrupto. Os poloneses buscavam minar a resistência dos soldados imperiais, e estes sabiam que os rebeldes não tardariam a desferir o ataque final. Por acaso do destino, o capitão imperial no comando descobrira uma saída subterrânea que poderia levá-los para fora do cerco inimigo. Designou então Mordred para checar a saída.
               Mordred saltou para dentro do alçapão encontrado na velha fábrica que servia de refúgio para os imperialistas. O túnel possuía uma altura de um metro e meio, e largura de igual tamanho. Era escorado por uma aparentemente sólida estrutura de madeira. O soldado acendeu a lanterna e mal começara a rastejar pelo túnel, quando uma forte explosão lhe arremessou para frente. Mordred perdeu os sentidos, e quando voltou a si, estava mergulhado na mais completa escuridão. Tateou pelo caminho em busca da lanterna e a encontrou um metro à sua frente. Ao acendê-la, percebeu que o túnel atrás de si havia desabado, provavelmente devido ao bombardeio polonês. Seus amigos estavam definitivamente perdidos. Só lhe restava seguir adiante, rastejando pelo caminho.
               Perdeu a noção do tempo que permanecera ali. Rastejou em silêncio, chorou, praguejou contra os poloneses, contra o império, contra o mundo. Parou várias vezes, pensando em abandonar-se no caminho. Sentia-se morto e enterrado.
               Num destes momentos, algo estranho aconteceu.
               A luz da lanterna não mostrava fim algum do túnel. Chegou a tentar adivinhar quais motivos fariam alguém construir um túnel tão longo, e com medidas tão limitadas. Desistiu. Não importava o motivo, o que importava era que aquele era o único caminho para uma possível salvação, afinal, ele deveria ter uma saída. Ou não?
               Arrastou-se por mais alguns metros. Uma brisa morna passou por seu rosto e renovou seu ânimo. Ar! Havia então uma saída próxima.
               Subitamente a lanterna apagou-se.
               Deu leves pancadas no aparelho. Apertou o compartimento das baterias. Era impossível que elas tivessem acabado, pois sua carga normalmente duraria meses. Sentiu um medo avassalador percorrer seu corpo.
               Da escuridão total, ouviu uma voz que dizia:
- Mordred... Mordred...
               Sacou a pistola que trazia à cintura e clicou no botão que a deixava pronta para disparo.
- Q-quem está aí? – murmurou sem confiança.
- Mordred... Mordred...
               Instintivamente apontou a pistola para a escuridão à sua frente. Um violento tapa invisível arrancou a arma de sua mão. Gemeu sentido dores com se tivesse socado uma parede de concreto.
- Quem está aí? QUEM? – o pânico apertava-lhe a garganta.
- Tu estás morto, Mordred. Morto, novamente... – disse a voz vinda de lugar algum, agora reconhecidamente masculina.
- Q-Quem?...
- É um destino digno de ti. Morrer como um rato. E não é a primeira vez.
- N-não entendo... Não entendo!
- Entenderás.
               Dedos frios e invisíveis tocaram seu rosto de cima a baixo. Mordred sentiu cada um deles como pinças de gelo queimando sua carne. O frio era insuportável. Gritou em agonia e contorceu-se no estreito corredor. A dor se prolongou por instantes infinitos, e quando cessou, sua mente estava inundada por imagens, sons e cheiros que jamais sentira na vida.
               Viu um imponente castelo. Sabia que o dono dele era um rei forte e leal e, ao mesmo tempo, sabia que odiava aquele homem. Viu também uma mulher amarga, que invariavelmente trajava negro, dizer-lhe coisas terríveis. Viu a si mesmo aceitar e compactuar com propósitos vergonhosos. Lembrou-se de executar o plano de Morgana, espalhando a poeira da gruta pela biblioteca que era sempre frequentada por Merlin. Quando o mago dera o primeiro passo dentro do ambiente, fora irremediavelmente capturado na armadilha e desaparecera numa nuvem de enxofre. Sem a proteção de Merlin, viu o pai mergulhar em uma crise após a outra: primeiro o desaparecimento de seu tutor, depois a descoberta da traição de Guinevere e Lancelot, e, por fim, o combate mortal contra o próprio filho, combate este que custara a vida de ambos. Teve plena consciência do traidor que era. Descobriu que era Mordred, o lendário filho traidor, fruto de uma zombaria do destino, que unira seu pai Artur Pendragon e sua mãe Morgana Le Fay, ambos irmãos, ambos pecadores, todos vítimas de um dramático e insensato plano de vingança.
               Mordred viu a si mesmo em várias outras vidas. Pobre, rico, astuto, ignorante, homem, mulher, velho, criança, mas com um ponto em comum entre todas as passagens.
               Uma morte horrível, seguida do esquecimento.
               O soldado perdido chorou. Chorou por pena e vergonha de si mesmo. Chorou até que não lhe restassem mais lágrimas. Quando tudo o que podia se ouvir era o murmúrio de sua respiração irregular, a voz invisível novamente se fez presente.
- Tens compreensão de tudo agora, homem amaldiçoado.
               Mordred encolheu suas pernas e tentou inutilmente cobrir-se com seus braços. Queria que a voz desaparecesse, mas ela não se calou.
- Participaste de uma trama sórdida, que te custou a eternidade. Pensavas que farias acordos com as trevas e elas te deixariam partir sem dano algum? Tua alma foi maculada, pois buscaste a marca do traidor.
- E-eu... Eu não sabia!
- Claro que não sabias. Eras um tolo presunçoso.
- Eu quero morrer! Quero esquecer!
- Ainda podes. Mas tenho outra coisa em mente.
- Quem está aí? Eu enlouqueci?
- A semente da loucura está plantada em ti desde tua primeira passagem por esta terra. E ela foi regada por tua sombria mãe.
- M-minha mãe? Como assim?... – as lembranças das vidas anteriores se amontoam na mente de Mordred, confundindo-o. Num esforço, ele tenta organizar suas ideias para não ser tragado pelo turbilhão que gira alucinadamente dentro de sua cabeça. – MORGANA! Sim, eu lembro! Oh, Deus... quero esquecer isso tudo...
- Não podes esquecer. Muito pelo contrário, deves lembrar-te. É aí que reside tua única chance.
- Chance de quê?
- De salvar-te. De recuperares a tua alma. De quebrares o ciclo.
- Eu faria QUALQUER COISA!      
- Escuta, Mordred, filho de Artur. As ações perniciosas que engendraste juntamente com tua mãe custaram muito ao mundo. Artur é uma alma iluminada. Iluminada como poucos. Tuas ações privaram o mundo de todo o bem que ele traria à Grã-Bretanha, iniciando uma série de eventos que hoje desembocam na desastrosa existência do império do qual vestes o uniforme. Um império baseado no sangue e na devastação. Uma abominação que consumirá o mundo numa guerra como nunca se viu antes.
- O que eu posso fazer? Não posso fazer nada!
- Tens uma missão. Desta vez, uma missão que busca reparar tua grave falta. Deves encontrar Artur e protegê-lo.
- Encontrar o rei Artur? Como?
- Os deuses são caprichosos. Assim como as ondas vêm e vão, as almas também. Não só tu retornaste, mas Artur também.
- Retornou? E onde ele está?
- Ele está na capital de teu império. Dormindo junto a outros infantes.
- Infante? Quer dizer, uma criança?
- Eu disse que os deuses são caprichosos. Sim, Artur é uma criança. E tu és o adulto que deve protegê-lo até a hora certa. Deves protegê-lo com a tua vida, se necessário. Só assim tua dívida estará paga e poderás descansar.
- Quem é você, afinal? É o meu inconsciente? Estou louco?
- Já fui chamado de louco, mas sempre pelas minhas costas. Os homens geralmente eram sábios em não me provocar.
- Já chega. Diga-me quem é ou acabe logo comigo aqui mesmo...
- Tuas ameaças me fariam rir, caso eu ainda possuísse algum senso de humor. Mas está bem, se isso te fará levantar e prosseguir com tua missão, eu digo-te meu nome... sou Merlin, de Caer-Fyrddin.
- Merlin... é claro...
- Ousa duvidar?
- Se é realmente Merlin, ou seu espectro, por que não vai você mesmo salvar Artur? Não possui poderes fantásticos?
               Um vento gelado rodopia no túnel, levantando poeira e cascalho. Mordred protege os olhos com as mãos, enquanto uma figura fantasmagórica surge atravessada no caminho, com as costas apoiadas na lateral de madeira. O soldado aos poucos vai conseguindo definir a figura, que tremeluz como um holograma na escuridão do local.
               O homem extremamente magro e sem roupas está preso por grossas correntes que envolvem seus braços, pernas e pescoço. Sua aparência é de abandono total.
- Levei centenas de anos para reunir as forças necessárias para despertar a ti e a outros. Mais do que isso não poderei fazer, pois meu pai é muito severo em seus castigos, hahahahaha...
               A risada macabra preencheu o túnel. Mordred levou as mãos aos ouvidos tentando bloqueá-la, mas era inútil.
- Meu tempo se esgota. Segue adiante, Mordred. Redime teu nome e tua alma agora ou aceita teu cruel destino imortal. Avança e encontrarás a saída. É só o que tenho para ti.
               E dito isto, o fantasma desapareceu, deixando o soldado atônito.
               Ainda incrédulo, Mordred rastejou por mais meia hora quando, por fim, encontrou a saída do túnel maldito. A saída era ocultada por um grande galpão, situado a mais de seis quadras do cerco polonês. Correu e afastou-se da cidade, conseguindo reunir-se com o exercito imperial no dia seguinte, febril e alucinando.
               Seis dias depois foi providencialmente enviado de volta à Inglaterra após os médicos do regimento atestarem que não estava em seu juízo perfeito, pois não conseguia dormir e ficava horas falando coisas sem sentido, relembrando coisas vividas certamente por outras pessoas. Suas ordens lhe diziam para aguardar em Londres pelo trâmite dos documentos que dariam sua dispensa do serviço militar.
Mal desembarcara no porto de Londres decidiu seguiu as pistas que Merlin havia implantado em sua mente até alcançar Artur na Unidade Materna de Hampstead.
               Conseguira usar suas credenciais militares para entrar na unidade sob pretexto de procurar um parente perdido. Com alguma agilidade localizara o bebê. A criança não tinha pais conhecidos e havia sido abandonado no posto médico cinco dias antes. Estava destinado ao orfanato estatal, de onde, se sobrevivesse, seria fatalmente encaminhado à carreira militar na adolescência.
               Ainda sob o manto de suas credenciais, conseguira escapar da unidade levando a criança. Por se tratar de um militar, ninguém suspeitou de sua visita num horário incomum, porém quando saiu do local percebeu que o toque de recolher já havia soado. Devia procurar abrigo imediatamente, caso contrário seria detido e interrogado. E neste caso achava pouco provável alguém acreditar em sua história.
               Mal havia percorrido duas quadras de distância da unidade materna quando seu uPAN vibrou com uma ligação. Estranhou de imediato, pois o aparelho era novo e ninguém possuía aquele número. Com as mãos tremendo, atendeu a chamada.
- Quem é? – perguntou nervoso.
- Sou uma amiga. Estou aqui para ajudá-lo.
- Não sei quem está falando. Vou desligar.
- Não faça isso, Mordred.
               Ao ouvir seu “novo” nome, parou estático em plena calçada.
- O que disse?
- Mordred. Eu disse “Mordred”. É o seu nome, não é?
- N-não... Quero dizer... é...
- Eu sei de tudo. Estou aqui para ajudar a resgatar o bebê.
- Como saberei que posso confiar em você?
               A mulher do outro lado da linha disse um nome. E Mordred esqueceu completamente as dúvidas quanto a sua falta de sanidade.
Percorreu vielas e becos apressadamente, constantemente desviando o caminho para escapar dos postos de fiscalização e das patrulhas aéreas que, com seus holofotes, vasculhavam cada canto da cidade. Sequestro já era um crime grave o bastante. Não precisava acrescentar resistência à prisão ou, quem sabe, a morte de algum policial ou militar.
***
               As lembranças pesavam na mente de Mordred. Os últimos dias haviam sido estarrecedores, sua vida havia dado uma reviravolta. Mas, estranhamente, algo em seu interior dizia que agora ele estava desempenhando o papel que lhe cabia. Ele não conseguia afastar a sensação de que finalmente estava realizando uma tarefa que já havia sido adiada por tempo demais. O bebê em seu colo seria levado para longe do império. No mínimo ele o estava salvando de uma vida militarista como a sua, e isso já o fazia sentir bem. Por outro lado, se ele não estivesse louco, estava desempenhando um papel fundamental no futuro do mundo. Estava contribuindo para o surgimento de uma alternativa à opressão fascista do governo do Imperador Max Dittrich. Lembrou-se da lenda de Artur, aquela que afirmava que ele voltaria quando seu povo mais precisasse. Rezou para que as lendas fossem verdadeiras.
               Já podia ver o Tâmisa duas quadras abaixo. Segundo o uPAN, seu contato devia estar logo ali, aguardando com um barco.
               Seu sorriso de satisfação foi arrancado de seu rosto quando um jato planador pousou verticalmente na rua à sua frente. O holofote da aeronave cobriu-o com luz da cabeça aos pés.
- Patrulha urbana: Erga os braços e permaneça onde está – ordenou a voz metálica vindo dos autofalantes externos do veículo.
               Mordred levantou os braços devagar. Sua mente fervilhava.
               Dois homens saltaram do planador. Um terceiro permaneceu no assento do piloto. Os dois militares caminharam até Mordred e o olharam inquisitivamente. Um deles carregava um fuzil nas mãos.
- Quero ver seus documentos, agora – exigiu o mais velho dos militares, um sargento de meia idade.
- Estão no meu bolso. Aqui em cima – respondeu Mordred.
- O que está fazendo nesta área proibida? – perguntou o sargento, revistando os bolsos de Mordred. Na revista encontrou o uPAN e a holoidentidade do fugitivo.
- Esqueci a hora e quando percebi já era hora do toque de recolher. Estava cortando caminho pra casa. Não quero problemas.
- Ninguém quer. Mas às vezes são inevitáveis – retrucou o militar inserindo a holoidentidade do fugitivo no leitor portátil que começou imediatamente a listar uma série de informações sobre Mordred – Hm, então é um soldado?
- Sim, senhor.
- E chegou há pouco... Polônia, hein? Deve ter sido dureza... Baixa médica...
- Foi bem difícil, senhor.
- E o que tem na bolsa?
- Como?
- O que tem na bolsa?
- Apenas roupas, senhor.
- Numa térmica?
- É para protegê-las da chuva.
- Sei. Abra-a.
               Mordred baixou os braços sob o olhar vigilante dos dois militares. Descansou a bolsa térmica sobre o asfalto. Amaldiçoou-se por ser tão tolo a ponto de não portar nenhuma arma. Respirou fundo e hesitou.
- Abra a bolsa, soldado – insistiu o sargento.
               O ronco do rasante de um planador atraiu a atenção de todos. O piloto do planador militar imediatamente dirigiu o foco do holofote para o intruso e todos puderam ver que não era uma aeronave do governo. Aproveitando a distração, Mordred saltou sobre o soldado que portava o rifle. Ambos rolaram pelo asfalto.
               O sargento procurou pela pistola em sua cintura. No momento em que a encontrou, foi jogado ao chão por outro rasante da nave desconhecida. Mordred era mais forte que seu adversário. Conseguiu dominá-lo e, sem retirar o rifle de suas mãos, virou- o para o sargento e disparou uma saraivada de tiros que atingiu o homem em várias partes, matando-o instantaneamente. O piloto do planador acionou imediatamente o comunicador e convocou reforços.
               No chão, o soldado tentava recuperar o rifle. Mordred deu-lhe uma coronhada tão violenta com o cabo da arma que sentiu o maxilar do homem deslocar-se. O soldado desmaiou.
               Possuído por um renovado espírito de luta, Mordred correu para a aeronave militar antes que o piloto pudesse decidir entre partir em segurança ou tentar deter o adversário. Saltou sobre a aeronave, enfiando o cano do rifle para dentro da cabine, impossibilitando que o piloto pudesse fechar a porta. O cavaleiro reencarnado acionou repetidas vezes o gatilho da arma, fuzilando o piloto.
               O planador civil pousou imediatamente, logo adiante da aeronave militar. Mordred sacou o rifle e esperou por algum sinal de hostilidade, mas foi surpreendido pela saída de uma bonita mulher morena, de cabelos encaracolados e corpo curvilíneo, que acenou para ele com gesto de urgência.
- Venha! Não vai demorar para que os reforços cheguem aqui!
- Quem é você?
- Sou seu contato! Guinevere!
               Mordred correu e saltou para o asfalto. Com passadas largas chegou até a bolsa e apanhou Artur cuidadosamente. O menino chorava assustado com os tiros, mas estava bem. Levantou-se e correu para o planador de Guinevere.
               Olharam-se com estranha familiaridade. Embora pudessem dizer que nunca tinham visto um ao outro, compartilhavam um elo que extrapolava a normalidade. Imediatamente relembraram sua convivência na época de Camelot e todo o rancor que existia entre eles, mas também lembraram-se das palavras de Merlin. Lembraram-se de que estavam em uma jornada de redenção.
- Entre. Vamos! – ordenou Guinevere.
               Mordred entrou e logo tomou o assento mais próximo. Aninhou Artur em seu colo e fixou o cinto de segurança. Guinevere tomou o lugar do piloto e partiu aceleradamente. Com destreza manobrou por entre os prédios baixos, afastando-se do local do conflito. Fez vários rasantes buscando colocar obstáculos entre a sua aeronave e as patrulhas que cortavam o céu. Com extrema habilidade, conseguiu afastar-se e deixar as luzes de Londres cada vez mais para trás. Por fim puderam respirar mais aliviados.
- Para onde agora? Merlin só me disse onde Artur estaria – perguntou Mordred.
- Ele me deu instruções para buscá-lo e leva-los para a França – respondeu Guinevere.
- O que tem na França?
- Mais alguém em busca de redenção. Alguém que pode nos ajudar.
- Sabe quem é?
- Claro. Você o conhecia como Lancelot du Lac...
               Seria uma reunião bem estranha, admitiu Mordred. Ele respirou fundo, buscando relaxar depois das últimas horas de tensão. Olhou para o bebê em seu colo e o acariciou ternamente.
- Não vou falhar contigo desta vez, pai.

FIM?






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